«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

A luz e a escuridão

Luís XIV ficou conhecido como o Rei Sol. Sun King é o título não só da biografia que Nancy Mitford escreveu sobre o monarca e que eu traduzi (chancela Livros da Raposa, Edições Cotovia), mas também de uma canção pouco conhecida dos Beatles (álbum Abbey Road), que eu não traduzi mas, as the story goes, terá sido escrita por John Lennon depois da leitura de uma biografia deste rei francês.
Já li muitas coisas sobre Luís XIV, mas parece-me que a biografia de Nancy Mitford se distingue sobretudo pelo tom espirituoso e pela atenção dedicada às figuras femininas que rodearam e influenciaram o Rei.
O livro é uma saída recente e espero que todos os que o comprem o achem tão divertido como eu achei. E que o Rei Sol possa continuar a inspirar manifestações artísticas tão breves e semanticamente obscuras como a canção dos Beatles.

Barcas novas


«Eu acho que ou morremos ou nascemos com cada pessoa importante na nossa vida.»

Captain John
no filme The River, de Jean Renoir

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

«Os sentidos são a nossa ponte entre o incompreensível e o compreensível»

Woman in a Green Jacket, 1913

«Ideias incompreensíveis têm formas compreensíveis.», escreveu August Macke em 1912. Não só concordo, como acho que é necessário procurar as formas compreensíveis do que é incompreensível: do indizível e do incompreensível só vale o que é dizível e compreensível.
(Por outras palavras, por muito imperfeitos que sejam os resultados finais dos nossos esforços para dizer e compreender alguma coisa, qualquer resultado final é infinitamente superior a nenhum resultado final.)


A grande sala real

Gosto muito da carta que que Sá-Carneiro envia a Pessoa a 24 de Agosto de 1915, exposta na sala dedicada a Mário de Sá-Carneiro da exposição Weltliteratur. No estilo extravagante que o caracteriza, Sá-Carneiro revela ali uma lucidez extraordinária não só relativamente à importância que Pessoa terá na literatura portuguesa, mas também ao lugar que ele próprio nela virá a ocupar.
O escritor que descreve a própria obra como «beleza retumbante de destaque e brilho, infinita de espelhos, convulsa de mil cores - muito verniz e muito ouro: teatro de mágicas e apoteoses com rodas de fogo e corpos nus. Medo e sonambulismo, destrambelhos sardónicos cascalhando através de tudo» é capaz de perceber muito antes de todos que Pessoa virá a ser uma espécie de marco de grandeza de uma literatura, o nome que toda a gente terá de pronunciar quando falar de literatura portuguesa: «toda uma civilização é, meu querido Amigo, o que você hoje perturbadoramente se me afigura», «o Prometeu que dentro do seu Mundo Interior de génio arrastaria toda uma nacionalidade: uma raça e uma civilização». E também de compreender que o seu próprio lugar se definirá por relação com Pessoa: «é você a Nação, a Civilização - e eu serei a grande Sala Real, atapetada e multicor - a cetins e esmeraldas - em douraduras e marchetações».
Esta carta é de uma clarividência esmagadora.


Pleure qui peut, rit qui veut


Lola, de Jacques Demy, Marseille, de Angela Schanelec, L’heure exquise, de René Allio.
Extremamente labiríntica na minha cabeça, Marselha vai-se aproximando perigosamente do estatuto de cidade-fetiche.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

Pensamentos dúbios e questionáveis



«It was not that he felt any emotion akin to love for Irene Adler. All emotions, and that one particularly, were abhorrent to his cold, precise but admirably balanced mind. He was, I take it, the most perfect reasoning and observing machine that the world has seen, but as a lover he would have placed himself in a false position. He never spoke of the softer passions, save with a gibe and a sneer. They were admirable things for the observer - excellent for drawing the veil from men's motives and actions. But for the trained reasoner to admit such intrusions into his own delicate and finely adjusted temperament was to introduce a distracting factor which might throw a doubt upon all his mental results. Grit in a sensitive instrument, or a crack in one of his own high-power lenses, would not be more disturbing than a strong emotion in a nature such as his. And yet there was but one woman to him, and that woman was the late Irene Adler, of dubious and questionable memory.»

É muito engraçado ver como Conan Doyle, qual malabarista tentando equilibrar demasiados objectos só para chamar a atenção para a dificuldade da actividade em que se especializou, joga com uma contradição aparente neste passo da aventura «A Scandal in Bohemia».
O autor começa por descrever Sherlock Holmes como uma máquina maximamente racional e observadora. Para este tipo de pessoa, segundo o narrador, as «paixões menores» só podem ser instrumentos úteis, válidos apenas na medida em que levantam o véu dos motivos e das acções dos seres humanos.
O malabarismo torna-se evidente na oração adversativa final do passo citado («And yet there was but one woman to him, and that woman was the late Irene Adler, of dubious and questionable memory.»), quando a tradicional e consagrada oposição entre actividade racional e amor entra por momentos em desequílibrio. O facto de mesmo o homem mais racional do mundo poder interessar-se por uma mulher sugere que o amor é uma coisa mental, com um fundo mais racional do que à primeira vista poderia parecer.
A famosa incompatibilidade entre Sherlock Holmes e o amor pode afinal ser falsa: se o amor é uma coisa mental, quanto mais racional se for, maior é o risco de vulnerabilidade ao amor.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Je me reconnais plus facilement dans les maladroits


Emmanuel Mouret, realizador, argumentista e actor francês, nasceu em Marselha, em 1970.
Autor e protagonista do filme Un Baiser s’il vou plaît, que passou no sábado, na Festa do Cinema Francês.
Prestem-lhe atenção: é tudo o que tenho a dizer.

Capítulo III … ou IV

Em que uma personagem se interroga:
«Como é que eu não percebi que isto podia vir a acontecer?».

Jogo duplo

Por muito que lhes perceba a utilidade, saber jogar, fazer um bom jogo, só por si, são habilidades que não me interessam nada. No final, estou sempre, mas sempre, com o antipático que fez mas tem dúvidas, nunca com o sedutor ineficiente que irradia confiança absoluta em si próprio.

sexta-feira, 10 de outubro de 2008

Fernando Pessoa desconhecido

Relações esperadas e inesperadas podem ser reveladoras de aspectos menos visíveis dos elementos entre os quais se estabelece relação? A exposição Weltliteratur, na Gulbenkian até 4 de Janeiro, trabalha com esta hipótese. Assumido como eixo central da exposição, Fernando Pessoa é mostrado enquanto paradigma do autor com facetas importantes por conhecer.

Se Pessoa escrevesse agora, talvez tivesse um blogue em que publicasse, quem sabe se em articulação com imagens muito semelhantes àquelas que aparecem na primeira sala desta exposição, algumas das coisas que agora encontramos reunidas no Livro do Desassossego:
«E, hoje, pensando no que tem sido a minha vida, sinto-me qualquer bicho vivo, transportado num cesto de encurvar o braço, entre duas estações suburbanas.» ou «Sou uma criança, com uma palmatória acesa, que atravessa, de camisa de noite, uma grande casa deserta.», ou ainda «Faço a paisagem ter para mim os efeitos da música, evocar-me imagens visuais […]. O meu triunfo máximo no género foi quando, olhando para o Cais do Sodré nitidamente o vi um pagode chinês com estranhos guizos nas pontas dos telhados como chapéus absurdos […].» E, contudo, encontro mais vezes comentários ou citações deste livro em blogues ingleses e americanos do que em blogues portugueses. Fora de Portugal lê-se o Livro do Desassossego. Em Portugal, o conhecimento de Pessoa parece esgotar-se na discussão do folclore dos heterónimos. Logo na primeira sala da exposição, no entanto, os três belíssimos fragmentos do Livro do Desassossego expostos lembram que neste livro tão pouco lido e discutido entre nós estão alguns dos melhores textos do autor. Será que os estrangeiros compreendem Pessoa melhor do que os portugueses?


Pormenor da peça Fernando Pessoa, de Richard Serra

No contexto da recepção de Pessoa fora de Portugal, para além das relações propostas de forma explícita ou implícita na exposição Weltliteratur, tomando o Livro do Desassossego como elo de ligação, chega mesmo a ser possível estabelecer uma outra relação inesperada, entre Lisboa e Londres, mais especificamente entre a Gulbenkian e a Gagosian Gallery, onde está patente uma exposição mostrando obras de Richard Serra, uma das quais intitulada Fernando Pessoa.
Questionado sobre a escolha do título desta peça, Serra classifica a ligação entre o trabalho e Fernando Pessoa como «tangencial»: estava a ler o livro na altura em que construiu a peça; não se deve atribuir demasiada importância aos títulos, diz o artista.
Parece-me que a explicação de Serra para o título da peça chama a atenção para um factor que deve ser tomado em consideração pelos visitantes da exposição em Lisboa. Não se deve atribuir demasiada importância aos títulos mas o título da peça de Serra é aquele porque o artista estava a ler o Livro do Desassossego: estabelecer relações, perceber relações, não são processos lineares de simples observação mas dependem sempre de um processo de construção particular que cada um joga com o que sabe e o que tem. As relações propostas espacialmente entre imagens e textos de Pessoa e de outros autores na exposição Weltliteratur configuram um percurso de descoberta, não de recepção passiva.

Gagosian Gallery

Ler uma entrevista ao Prof. António Feijó, comissário da exposição na Gulbenkian.

Telheiras by night, Telheiras by day

Por volta das três da manhã, alguém prendia balões brancos a todos os carros da rua para a qual está virado o meu quarto. Depois divertia-se a rebentar balões aqui e ali, ao ritmo do capricho, mas sem pressas e com grande estardalhaço. Às oito da manhã está vento e em certos carros podem ser vistos ainda alguns balões brancos dançando no ar. Nos outros carros ficou só o cordel, sem balão, e contudo tremendo ao vento também.
A crise mental, tão ou mais importante do que a crise financeira.

segunda-feira, 6 de outubro de 2008

A lição do mau aluno

No Instituto Benjamenta de Jakob Von Gunten aprende-se a importância da submissão e das tarefas pequenas e subalternas para a sobrevivência:
«Quem saiba resignar-se, adaptar-se e mexer-se, por tolo e ignorante que seja, ainda não está perdido, talvez encontre melhor o seu caminho na vida do que aquele que é esperto e vem equipado com com conhecimentos.» (p. 32); «É claro que temos de pensar, pensar muito até. Mas a submissão é muito, muito mais refinada do que pensar. Quando pensamos, oferecemos resistência, e é tão feio isto, tão vicioso. Se quem pensa soubesse o quanto pensar vicia as coisas. Quem por zelo não pensa, faz qualquer coisa, e esta coisa é bem mais necessária.» (p. 89)

Não se pode dizer que o narrador seja bom aluno, uma vez que demonstra algumas dificuldades em adaptar-se aos princípios em que assenta a educação da escola.
Em vez de viver como «uma pessoa de cultura numa era de cultura» percebe o mundo como um conto de fadas e um sonho selvagem e arrebatador devido à atmosfera estabelecida pelo ritmo apressado das pessoas na rua e pelo brilho dos seus olhos deixando transparecer as suas ambições: «todas estas figuras, e eu com elas, caminham apressadamente sob a gaze opaca, como figuras de um sonho, à procura de alguma coisa, mas sem nunca encontrar, parece, o que é belo e certo. Todos aqui procuram alguma coisa, todos anseiam por riquezas e fortunas fabulosas. Sempre com pressa. Não, sabem dominar-se em tudo, mas a pressa, a ânsia, o tormento e a inquietude brilham em lampejos nos olhos ávidos.» (p. 40)
Neste universo feérico, segundo o narrador, aqueles que cumprem tarefas menores figuram como duendes «que, como é sabido, cumpriam todas as tarefas mais rudes e árduas apenas por uma sobrenatural bondade do coração.» (p. 37).

No núcleo deste conto de fadas que se joga com regras pouco compreensíveis reside um paradoxo que o narrador não consegue resolver: apesar de desejar acima de tudo permanecer pequeno («Fico tão feliz por não ver nada em mim digno de consideração e de respeito! Ser e permanecer pequeno. E se uma mão, uma circunstância, uma onda, me erguesse e levasse aonde o poder e a influência dominam, eu próprio desfaria os laços que me privilegiassem, eu próprio me atiraria para a escuridão baixa e muda. Só consigo respirar nas regiões inferiores.», p. 142), nunca consegue ser do tamanho adequado para sequer desejar ter sucesso no mundo, ao contrário de alguns dos seus colegas: «gente estúpida como ele foi criada para avançar, chegar longe, viver bem e mandar, ao passo que pessoas sensatas como eu têm de deixar florescer e esmorecer os seus bons impulsos ao serviço dos outros. Eu, eu serei qualquer coisa muito insignificante e pequena.» (p. 44).
Para se sobreviver incólume num mundo pequeno é preciso continuar sempre mais pequeno do que os pequenos, ao ponto de, num misto de fascínio e de repulsa, se descrever mal as próprias regras do jogo deles. É isto que aprendemos com Walser, sobretudo por ele ser tão mau aluno.

O livro seguinte

Ler para esquecer parece continuar a ser o meu lema. (Isto há-de abrandar, espero.) Depois de Walser, mais ficção: A Sicilian Romance, de Ann Radcliffe. Publicado originalmente em 1790, está longe de ser uma saída recente e é, mais uma vez, um livro escolhido devido a uma referência num blogue.
A arquitectura dos castelos dos romances góticos (ruínas, passagens secretas, sombras, segredos, percursos labirínticos) agrada-me muito. Apesar de não ser grande apreciadora de Jane Austen, li Northanger Abbey durante o Verão e, como achei muito divertidas as referências paródicas a Radcliffe, decidi procurar a origem.
O que li até agora de A Sicilian Romance não me está a parecer entusiasmante, mas aguardemos.

domingo, 5 de outubro de 2008

A tese roubada

Conheço algumas histórias de teses desaparecidas antes de serem terminadas ou até iniciadas, mas aquela que mais me divertiu nos últimos tempos está no décimo primeiro capítulo do livro Histoires de Peintures, de Daniel Arasse (Folio).
Depois de uma tese de mestrado sobre Masolino, Arasse planeava escrever a tese de doutoramento sobre S. Bernardino de Siena. Naquele momento crítico em que a bibliografia está lida e as ideias mais ou menos organizadas, pouco antes de se começar a escrever, Arasse levava para todo o lado um saco pesado de aparência valiosa onde guardava todos os papéis e livros com que iria trabalhar. Um dia, em Florença, esse saco desapareceu-lhe da mala do carro.
Arasse conta que na altura colocou vários anúncios desesperados nos jornais e chegou a rezar a S. Bernardino pela recuperação do material perdido. Tudo em vão. Depois acrescenta que suspeita que S. Bernardino tivesse um segredo e por isso não quisesse que a tese fosse escrita. O roubo ter-se-ia dado por intercessão do santo.
Por acaso, tenho uma explicação diferente. Embora haja momentos difíceis na história de redacção de uma tese, não há nada tão horrível como o momento em que o trabalho preparatório está terminado. Logo que se tenta começar a escrever torna-se evidente que a tese genial que há meses vínhamos idealizando afinal não terá nunca existência real. Nunca estamos à altura daquilo de que nos imaginamos capazes. O início da redacção de uma tese é um momento de agora ou nunca: trata-se de optar entre viver com aquilo que somos capazes de fazer ou simplesmente passar a alimentar durante anos o que imaginamos mas somos incapazes de realizar.
Durante a redacção da tese é preciso optar permanentemente por continuar a escrevê-la em vez de parar ou destruir todos os documentos relacionados com ela. (No meu caso, todos os dias desejava secretamente que os meus gatos descobrissem um botão mágico que apagasse a tese e todas as cópias que dela tinha guardado, quando, cansados de me ver horas a fio a olhar para um écran em vez de lhes prestar a devida atenção, iam para cima do teclado. Todos os dias colocava a hipótese de abandonar o tema e escolher um assunto em que os meus esforços pudessem não me desiludir tanto.) Mas o mais difícil de tudo é começar: quanto mais se escreve, mais fácil é continuar a escrevê-la e mais custa perder o que já se conseguiu.
O segundo momento mais difícil é o da conclusão da tese: qualquer discussão de um tema pode continuar ad aeternum sem o esgotar. Há uma altura em que ou entregamos a nossa tese imperfeita ou passamos o resto da vida a tentar melhorá-la sem que isso nos faça necessariamente sentir mais satisfeitos.
Quanto a Arasse, depois da tese roubada, decidiu que não ia repetir o trabalho já feito, a investigação, as fotografias. Achou melhor mudar de tema e de orientador; e fez o doutoramento sobre uma questão diferente. Ainda hoje continua a pensar sobre S. Bernardino de Sienna, que considera um assunto apaixonante.
Cá para mim, foi Arasse que suprimiu o próprio saco. Uma tese roubada é o sonho secreto mais querido de qualquer candidato a mestrado ou a doutoramento.

Imagem: retrato de S. Bernardino de Siena, parte de um tríptico de Francesco d'Antonio da Viterbo

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Animais na cabeça




Ando a ler uma tradução de Walser que saiu em 2005: Jakob Von Gunten. Não sou grande leitora de saídas recentes. Para dizer a verdade, os motivos que me fazem escolher um livro relevam muitas vezes da natureza do capricho. Desta vez, por exemplo, peguei no romance de Walser simplesmente por ter encontrado estas duas belíssimas capas num blogue.
Ainda vou muito no início. Para já, no passo que se segue, gostei imenso da relação inusitada que se estabelece entre contar histórias, estar deitado na cama vestido e calçado e infringir os regulamentos:

«Nós, eu e ele, muitas vezes nos deitamos juntos na cama do meu quarto, vestidos, sem tirar os sapatos, e fumamos cigarros, o que vai contra os regulamentos. Schacht gosta de infringir os regulamentos, e eu, digo-o abertamente, não gosto menos. Contamos grandes histórias um ao outro, enquanto estamos assim deitados, histórias da vida, ou seja, reais, mas sobretudo histórias inventadas com acontecimentos que apanhamos do ar. E então à nossa volta tudo parece levemente ressoar num movimento ascendente e descendente ao longo das paredes. O quarto estreito e escuro estende-se, surgem estradas, salões, cidades, palácios, pessoas e paisagens desconhecidas, trovões e sussurros, prantos e conversas, e assim por diante.»

Jakob Von Gunten, de Robert Walser
Trad. Isabel Castro Silva, Relógio d’Água, p. 15

Acidentes

Via BiblioOdyssey

Eu diria que há um tudo-nada de abrangência excessiva em quase todas as descrições de acidentes cardíacos que conheço. «Dor no peito que vai para o pescoço, queixo, braços ou costas, mal-estar, suores frios e sensação de náuseas ou vómitos», «a dor não varia com a respiração ou mudança de posição»: o elenco dos sinais de enfarte proposto pela Coordenação Nacional para as Doenças Cardiovasculares nos anúncios de uma nova campanha de divulgação, por exemplo, podia funcionar também não só como descrição válida de um simples ataque de pânico, mas até como narrativa impressionista da segunda e da terceira décadas da minha vida.


quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Meu querido Verão de 2008


Tão pouco sol apanhei durante o Verão de 2008 que chego por vezes a recear que a palidez me dissolva definitivamente os traços do rosto. De contacto com o mundo exterior limitado à observação através da janela de um escritório com vista para uma esplanada e um pequeno jardim, habituei-me a medir as horas do dia através da comparência de certas figuras, reconhecendo os frequentadores assíduos do café como elementos importantes da minha vida.
O dia a começar através da montagem dos guarda-sóis e da arrumação das mesas e das cadeiras, ecos metálicos pelo ar. Uma lufada de vento mais forte, a meio da manhã, fazendo os guarda-sóis desabar sobre os clientes mais adormecidos; os gémeos jogando futebol sobre a relva, com sandálias verde fluorescente; o dentista bodybuilder e motard fumando um cigarro antes de ir trabalhar.
Julgar-se-ia que um homem e uma mulher envergando camisas no mesmo invulgar tom de rosa-choque, lado a lado mas em mesas diferentes e sem se conhecerem, fossem mais adequados a um filme de Rohmer do que a um café de Telheiras observado por alguém que sofre de enxaquecas e apesar disso tenta organizar as ideias durante o Verão, mas pormenores insólitos e dissonantes ocorrem invariavelmente a meio da tarde.
De entre os figurantes e protagonistas da esplanada, chamava-me sempre a atenção um senhor de alguma idade que aparecia sozinho com um cãozinho branco de aparência pouco simpática. Muito nervoso, o cãozinho rosnava a qualquer outro animalzito que lhe acontecesse avistar ao longe. Bastava o dono deixá-lo cá fora enquanto ia pagar para ele armar grande chinfrineira. Optar por ficar dentro do café e deixá-lo no exterior era a garantia mais certa de cerca de meia-hora de latidos lancinantes e de três parágrafos para deitar fora.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Machado de Assis, conhecido

Fico um bocado perplexa quando se fala do desconhecimento da obra de Machado de Assis em Portugal. Pelo menos durante a década de noventa do séc. XX, a cadeira de Literatura Brasileira foi obrigatória para o curso de Estudos Portugueses, e opcional para as variantes de Línguas e Literaturas Modernas que incluíssem Português na Faculdade de Letras do Porto. Nesse tempo entravam por ano em cada variante à volta de 60 alunos. Durante esses anos, eu e centenas de outros alunos estudámos não só Machado de Assis (contos e o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas), mas também Guimarães Rosa e Clarice Lispector. A cadeira de Literatura Brasileira era assegurada pelo Prof. Arnaldo Saraiva, um excelente comunicador. Muita gente lia depois mais romances de Machado de Assis: Quincas Borba e Dom Casmurro estavam disponíveis no mercado em edições baratinhas da Lello & Irmão.
Não percebo, portanto, que se fale de desconhecimento. Falar-se ou não de um autor nos jornais e em blogues não significa necessariamente que ele é conhecido ou desconhecido. Muita gente em Portugal fala de Proust, por exemplo, e parece-me que Proust é menos lido e, por conseguinte, menos conhecido do que Machado de Assis.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Aviso à navegação


Para quem não saiba, terminei na semana passada a minha tese de mestrado. Nos últimos doze meses, só duas coisas me distraíam satisfatoriamente dos problemas que andava a tentar resolver: confeccionar sobremesas complicadas e ler ficção. Esta circunstância conduziu-me a duas constatações: embora não tenha vocação para fada do lar, posso ser uma leitora voraz.
Li muita coisa, muito depressa. Como sinto uma certa necessidade avassaladora de escrever sobre coisas diferentes (a tese é sobre cinema), é possível que apareçam alguns posts sobre literatura nos próximos tempos. Haverá citações.

Premiados surpreendentemente bons

Em 2007 o Booker Prize foi atribuído a The Gathering, de Anne Enright. (Publicado em Portugal pela Gradiva, com o título Corpo Presente.) Os resumos na contracapa e as referências nos jornais que descreviam este romance como o retrato de uma família que vale também como retrato de um país contribuíram para me afastar dele durante bastante tempo.

Cheguei ao livro porque por acaso alguém citou a última frase e gostei dela. Folheei-o depois numa livraria. A primeira frase também é muito boa. O livro de Anne Enright começa assim:
«I would like to write down what happened in my grandmother’s house the summer I was eight or nine, but I am not sure if it really did happen.»
A leitura do que se segue lembra-me que a vida acontece sem relações de causa/efeito, sem advérbios de modo e sem marcadores temporais. Contar histórias não é um mecanismo literário gasto: é aquilo que, dentro ou fora da literatura, fazemos para compreender. Sem contarmos histórias não teríamos a certeza se certos episódios sucederam realmente, nem saberíamos explicar quando, como, onde, ou por que razão aconteceram.

Anne Enright

Logo na segunda página, a narradora diz:
«I do not know the truth, or I do not know how to tell the truth.»
Dentro e fora da literatura, a verdade é aquilo que uma narração vai construindo discursivamente.
Aceito que a dificuldade reside na zona movediça que a necessidade de contar histórias instala entre ficção e vida real: tanto a ficção como a vida consistem em coisas que sentimos necessidade de contar e de articular em narrativas. A questão é que talvez seja precisamente esta indistinção que nos faz continuar não só a ler, mas também a viver e a contar histórias sobre isso.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

The beast that kept me inside

Allison Sommers

Parece-me que já vejo a margem.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Flooded street

Lucknow, India: A man carries drinking water through a flooded street

«Water, water, every where,/Nor any drop to drink.» Imaginem-me por impróprias águas para consumo, com um pequeno depósito de água potável em equilíbrio precário sobre a cabeça, extraído a custo sabe-se lá de onde e como. Se entretanto não for arrastada pela corrente e por acaso conseguir chegar viva à margem longínqua, aviso.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Abandonados


Um jogo de computador onde pudéssemos descarregar as imagens e as recordações do que tivemos de deixar para trás (os sítios onde vivemos tal como eram então, as pessoas que os habitavam, cadernos de escola, brinquedos, as roupas que usámos, produtos que comprávamos e entretanto deixaram de ser comercializados, animais de estimação, sons que deixámos de ouvir) para depois os visitarmos.


Este jogo de aventuras um duplo objectivo haveria de servir. Por um lado, comprovarmos de vez em quando que o nosso passado de facto aconteceu, em vez de ter sido simplesmente imaginado. Por outro, esclarecermos se tudo aconteceu tal como nos lembramos, e não de outra maneira menos fabricada.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Vivem em nós inúmeros

Antes de se tornar realmente famosa, Kidman tinha uma aparência um pouco selvagem que a distinguia das outras (olhos e sorriso descontrolados, cabelo ruivo abundante com um frisado aparentemente indomável). Entretanto, parece, infelizmente, ter cumprido um percurso de transformações plásticas que lhe diluíram os traços distintivos, estampando-lhe no rosto a mesma expressão ausente de tantas actrizes e aspirantes a actrizes de Hollywood.
Só em filmes como Margot at the Wedding, em que aparece com um aspecto ligeiramente diferente do habitual e assume personagens pouco convencionais, consigo reencontrar a memória da imagem dela pré-cirurgias.

Fotografia de Mary Ellen Mark

Gostei muito de a ver em Fur, por exemplo (que quase toda a gente detestou, já sei, mas eu não). Na altura até guardei esta fotografia que saiu na Vanity Fair da actriz enquanto Diane Arbus. O cabelo, a posição das mãos, o olhar mal domesticado lembram-me coisas em que acho saudável pensar de vez em quando.

sábado, 19 de julho de 2008

I remember you well

Nos últimos tempos, por vários motivos que desejo ardentemente sejam o mais passageiros possível, só ouço a música que tenho no computador e esta tem de reunir algumas características especiais: funcionar bem quando ouvida baixinho, não perturbar os gatos (que se enervam com algumas coisas tipo Coldplay, Arcade Fire e a banda sonora de Música no Coração), não adormecer, não desconcentrar e não contribuir para elevar os níveis já de si naturalmente próximos da toxicidade do meu desespero. Isto, acreditem, deixa-me pouco por onde escolher. Passo o dia a ouvir coisas que não me entusiasmam particularmente só porque instalam um ritmo que me ajuda a raciocinar.
Nem sempre fui a péssima ouvinte de música que hoje sou mas nunca fui uma melómana fiável. Quando compro um disco, encontro invariavelmente uma ou duas faixas que ouço em repeat até à exaustão, esquecendo as outras. Não é bonito.
Vivo numa casa com muitos discos de Leonard Cohen, mas não acho que ele seja «um dos maiores artistas de sempre», como ouvi anunciado na televisão a propósito do concerto de hoje. (Prefiro, sei lá, Proust e Miguel Ângelo.) Nem sequer gosto especialmente da voz dele. Ouço muitas vezes First We Take Manhattan e Famous Blue Raincoat, mas, sacrilégio pop, optando frequentemente pelas versões de Jennifer Warnes. É verdade que certo Verão pouco mais ouvi para além da faixa Take This Waltz; hoje, contudo, não consigo ouvi-la duas vezes seguidas.

Imagem de Linda Troeller

Seria incapaz de comparar a audição de um disco a uma experiência religiosa. A única experiência religiosa de que me lembro é a de ter desmaiado numa igreja na adolescência durante uma missa a que assisti sem tomar o pequeno-almoço, depois de uma noite com poucas horas de sono, num dia muito quente, ao mesmo tempo que estranhamente me recordava de uns versos de Chuva Oblíqua.
Para momentos mesmo críticos, reconheço, no entanto, que guardo no computador uma pasta com algumas músicas que não só me desconcentram como perturbam os gatos, não podendo ser ouvidas a não ser com um volume bastante elevado. E uma delas, por acaso, é de Leonard Cohen.

PS: Nada a fazer, Henrique. O problema é a minha alma ter um fundo pop que não consigo ignorar e com que, para dizer a verdade, até simpatizo.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Of taxis and cats

É possível que quem viaja de táxi com gatos regularmente corra o risco de se habituar a dividir a humanidade em três categorias:

- os que cobram legitimamente uma taxa de cerca de quatro euros para transportar dois gatos (dois euros por cada, a lei assim o permite);
- os que cobram apenas dois euros ainda que transportando dois gatos;
- os que não cobram nada.

Ter ou não ter gatos é estranhamente irrelevante para a equação. Os que cobram a taxa na totalidade são por vezes orgulhosos e conversadores donos de gatos .

E você, caro leitor, se fosse taxista, quanto cobraria?

segunda-feira, 7 de julho de 2008

A natureza do lugar


Na China, um tapete de algas invadiu a área em Qingdao em que iriam ter lugar as competições de vela dos Jogos Olímpicos. Conta-se que centenas de soldados e cerca de 10 000 cidadãos estão empenhados na desobstrução da zona de modo a assegurar a realização das provas.

Conheci em tempos uma pessoa que sempre que havia derramamentos de petróleo no oceano começava o dia de trabalho analisando nos jornais a progressão da mancha em direcção à costa e os efeitos destrutivos da catástrofe ecológica, como se esses percursos lhe revelassem coisas sobre a própria vida.


Também eu tenho seguido o problema das algas na China com o entusiasmo comedido com que acompanharia o relato da minha existência se este estivesse a ser publicado online.



Os entendidos descrevem as condições oferecidas por Qingdao como sendo difíceis mesmo sem algas: ventos mais fracos do que seria desejável, correntes excessivamente fortes e um nevoeiro denso que frequentemente impede a navegação. Àqueles que sugerem ser a invasão das algas uma questão de má sorte ou de maldição, os entendidos respondem que o problema reside apenas na natureza do lugar.
Os responsáveis, por sua vez, insistem em lembrar que não têm plano B.


sábado, 5 de julho de 2008

A senhora da romã

Para mim, alguns dos passos mais inesquecíveis da Recherche são as descrições de Odette enunciadas a partir do ponto de vista de Swann: os desvios em relação aos padrões de beleza que o esteta cultiva acabam por atrair ainda mais a sua atenção relativamente àquela com que acabará por casar.
Gosto muito da noção de alguém a descrever uma pessoa que o interessa apesar de não corresponder a padrões convencionais. Tenho pensado nisto porque, um pouco por acaso, venho ultimamente encontrando várias descrições de beleza feminina imperfeita nas coisas que ando a ler.
Não me consigo lembrar de muitos retratos deste género e tenho até a suspeita de que só grandes escritores são capazes de captar de forma superior não só a mistura subtil de atracção e repulsa suscitada por um objecto de desejo imprevisto, mas também a investigação que tal desconcerto pode desencadear.


Na descrição de Nabokov gosto da noção de expansão desordenada da carne:
«Mas havia um [retrato] que dominava todos com a moldura fantasista cravejada de granadas; mostrava a três quartos uma magra e morena jovem com vestido justo, olhos corajosos e cabelo farto. […] Sim, porque ela mesma é quem ali estava – embora os meus olhos tentassem devassar-lhe as formas actuais, sem nenhum êxito, para extrair delas a graça daquela criatura que lá tinham metido dentro.»
(Na outra Margem da Memória, trad. Aníbal Fernandes, Difel, p. 90)


Na descrição de Kosztolányi agradam-me os efeitos do tempo e da corrupção:
«Na verdade, que magnífico animal [Orosz Olga] não era, que gatinha, sem fé, nem lei. E já não era jovem. Passara os trinta, talvez os trinta e cinco. Mas a carne era flácida, voluptuosa e cansada, como se as inúmeras camas estrangeiras, os inúmeros braços estrangeiros, a tivessem adoçado, e o rosto era suave, como a polpa de banana, os seios como dois breves cachos de uvas. Habitava nela uma espécie de inocência a corromper-se, o definhamento iminente e a poesia da morte. Expirava o ar, como se lhe queimasse a boca, como se, na pequena boca devassa, lambesse uma guloseima, saboreasse um champanhe.»
(Cotovia, trad. Ernesto Rodrigues, D. Quixote, p. 89)


Para ler algumas descrições de Odette na Recherche, clicar nas alíneas associadas a Botticelli.


sexta-feira, 4 de julho de 2008

Animais com gatos

Num destes dias, no metro de Telheiras, cruzei-me com uma senhora africana que trazia uma criança pela mão e transportava uma grande trouxa sobre a cabeça. Vinha subindo pelas escadas rolantes, numa direcção inversa à minha. Era muito bonita.
Eu própria venho de um sítio onde ainda conheci mulheres capazes de percorrer dois quilómetros a pé equilibrando sobre a cabeça um recipiente com flores para vender ou para enfeitar campas no cemitério. Independentemente da idade, tinham os pescoços mais elegantes que já vi.
Segundo o autor da peça, o gatinho da imagem representa uma homenagem bem-humorada aos bibelôs domésticos e à sua capacidade de ignorar elementos como gravidade, escala e leis da natureza, mas não me venham dizer que não andamos todos por aí com coisas estranhas, em equilíbrio precário, sobre a cabeça. Dá-se simplesmente o caso de ninguém as ver.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Narrativas mesmo micro

Hemingway costumava dizer que o seu melhor texto tinha apenas seis palavras:
«For sale: baby shoes, never worn.»

Aqui há uns tempos, o Guardian propôs o desafio das seis palavras a alguns escritores conhecidos.

Alexandre O'Neill tem uma micronarrativa em forma de poema telegráfico que obedece à regra das seis palavras:
«JORGE / Podes vir. / Mamã, enfim, morta.»

Num destes dias, vi na televisão uma florista que imprime mensagens em pétalas de flores dizer que a frase mais enigmática e intrigante que se lembrava de ter inscrito numa rosa era:
«Só mais cinco minutos.»

Cinco minutos de quê?
A cada um a sua pequena história.

Londres para aficionados

Para quem gosta da cidade ou planeia visitá-la em breve, alguns belíssimos posts no Dias com Árvores , escritos a propósito de uma visita recente:

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Os pássaros de Shakespeare

Via Robotwalrus

É tão raro encontrarmos histórias sobre desejos e sonhos nas televisões e nos jornais, por entre os episódios gratuitos de ganância e violência que por lá abundam. E, no entanto, desejos e sonhos são uma componente importante e por vezes decisiva de todas as vidas.
De Eugene Schieffelin pouco mais se sabe para além do facto de ter libertado sessenta estorninhos europeus no Central Park de Nova Iorque em 1890 e outros quarenta em 1891. Conta-se que Schieffelin agiu movido pelo desejo de que os americanos pudessem ver no seu país todos os pássaros mencionados nas peças de Shakespeare.
Schieffelin terá depois chegado a tentar introduzir piscos, tentilhões, rouxinóis e cotovias nos Estados Unidos, mas sem o sucesso que obteve com os estorninhos. Os descendentes dos estorninhos de Schieffelin são actualmente tão numerosos no país que é bem possível que se tenham tornado mais conhecidos lá do que o próprio escritor inglês que os referiu apenas uma vez na sua obra.
E foi assim que o capricho vagamente literário de um excêntrico alterou a fauna dos Estados Unidos.
Se Schieffelin tivesse feito o mesmo hoje, provavelmente nunca teríamos sabido.


segunda-feira, 16 de junho de 2008

O cão que traz um pau na boca

«Um grande inventor respondeu um dia a quem lhe perguntava como fazia para ter tantas ideias novas:’pensando ininterruptamente nelas’. E de facto bem pode dizer-se que as ideias inesperadas nos vêm porque estávamos à espera delas. São, em grande parte, o resultado conseguido de um carácter, de certas inclinações constantes, de uma ambição tenaz, de uma incessante ocupação com elas. Que tédio, uma perseverança assim! Mas vista de outro ângulo, a solução de um problema intelectual não acontece de modo muito diferente, como um cão que traz um pau na boca e quer passar por uma porta estreita; vira a cabeça para a esquerda e para a direita tantas vezes até que consegue passar com o pau; o mesmo acontece connosco […]; de repente estamos do outro lado, e sentimos claramente um ligeiro desconcerto em nós pelo facto de as ideias terem vindo por sua iniciativa, em vez de esperarem pelo autor.»

O Homem Sem Qualidades, Musil
p. 165 (trad. João Barrento)


Um dos meus passos preferidos até agora.


Moondust will cover you

Num dos feriados, umas cassetes antigas em que não apontei as músicas que na altura gravei deram origem a um difícil jogo de identificação. Por um lado, nomear os intérpretes. Por outro, perceber o que me teria passado pela cabeça ao escolher, há tanto tempo, aquelas faixas.
De repente, dei por mim a pensar que a inesperada combinação poderia estar a revelar-se uma banda sonora adequada ao presente, como se a pessoa que então fui tivesse adivinhado que, anos depois, alguém como ela pudesse vir a precisar de ouvir certas músicas outra vez, naquela ordem, durante um jogo desprovido de consequências.
Noutro destes dias, saí pela primeira vez do cinema antes de um filme acabar. Foi durante Rocco e os seus Irmãos. Depois de duas horas de filme, fiz as contas. Se ficasse na sala, ainda teria quarenta e cinco minutos de gritos e vinganças a suportar. Não estou nada arrependida. Visconti é sobrevalorizado.

[Cravo Bem Temperado, Garbage, Blur, Passengers, David Bowie, Radiohead]


sexta-feira, 6 de junho de 2008

Flutuar, flutuar


Há que reconhecê-lo. Nunca nenhum outro blogue se aproximou tão perigosamente da condição de agregado de lemas e descrições de fim-de-semana: tenho andado ocupada com certas questões teóricas e argumentativas, uma complexa intriga policial que exigiria a presença de Sherlock Holmes para ser deslindada.
Hoje, para variar, proponho este sortido de links.
  • Comecei o primeiro volume de O Homem Sem Qualidades. Digamos que não é propriamente leitura fácil. Esta é para a Cristina:
    «A régua de cálculo: […] um pequeno símbolo que se traz no bolso do peito e se sente sobre o coração como um risco duro e branco. Quando se tem uma régua de cálculo e alguém nos vem com afirmações bombásticas e sentimentos grandiosos, dizemos-lhe: Espere um momento, vamos primeiro calcular a margem de erro e o valor provável de tudo isso!» (p. 69.).

  • A propósito da Feira do Livro, gostei muito da primeira visita do Francisco José Viegas. Como quero sempre saber quem lê o quê, divirto-me todos os dias com os posts «É fazer as contas» do Blogue do JL.

  • No excelente Os Livros Ardem Mal, entre outros posts dignos de nota, este, sobre um Animalário. Ainda sobre animais, ver Domesticated, uma série de fotografias que Amy Stein elaborou a partir de histórias supostamente reais sobre interacções inesperadas entre pessoas e vida selvagem: «We at once seek connection with the mystery and freedom of the natural world, yet we continually strive to tame the wild around us and compulsively control the wild within our own nature. Within my work I examine the primal issues of comfort and fear, dependence and determination, submission and dominance that play out in the physical and psychological encounters between man and the natural world.»

  • Muita curiosidade em relação a um certo livro que se vem anunciando por aqui: Belvedere, Kripp.

  • O que aconteceu ao blogue Bandeira ao Vento: ainda estou em denial.

  • Via Ciberescritas, um conceito interessantíssimo, que até agora, infelizmente, não teve ainda resultados muito entusiasmantes.

Animais com gatos


segunda-feira, 2 de junho de 2008

Fins-de-semana

Bichos

Sobreposições inesperadas entre animais e pessoas na exposição patente na Galeria do Museu Bordalo Pinheiro (Campo Grande, em frente ao Museu da Cidade, entrada grátis).
Gostei especialmente dos quadrinhos de Miguel Branco: figuras antropomórficas com um rosto cujas contorções de tinta escapam ao humano. Diria que vemos assim o rosto das pessoas antes de sabermos que estamos a vê-las.
Para chegar à Galeria, atravessar um corredor exterior encimado por glicínias perfumadas.

Graffiti
Numa das casas de banho do King, ala feminina, um retrato a lápis de Ludivine Sagnier e seis versos de Rilke.
O filme de Chabrol protagonizado pela actriz, apesar de ter um cartaz bonito, não é grande coisa, infelizmente. (O corte de cabelo de Benoit Magimel, valha-me deus.)

Feira do Livro
Para uma História da Alimentação de Lisboa e seu Termo, de Alfredo Saramago e Lendas, de Gustavo Adolfo Bécquer, ambos em saldo na Assírio&Alvim.

Mais do mesmo
Compro o Expresso com a esperança de encontrar informação sobre os filmes do festival de Cannes. Só duas páginas sobre o assunto. Nenhuma referência elucidativa a filmes de realizadores que me interessam (Desplechin, Garrel, Nuri Bilge Ceylan, etc.). Na Revista, dezenas e dezenas de páginas sobre futebol, desde o Euro até Figo. Isto de comprar jornais que só me vendem aquilo que já encontro em toda a parte não leva a lado nenhum.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Lemas de fim-de-semana


Make mistakes faster.
(via An Incomplete Manifesto for Growth, de Bruce Mau)

Imagem: Instalação do artista coreano Do-Ho Suh na exposição Psycho Buildings da Hayward Gallery (Londres)

terça-feira, 27 de maio de 2008

Animais com gatos

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Fins-de-semana

Feira do Livro
Fui no domingo. Muita gente e, hélas!, fila interminável para as farturas.
A diversidade, para mim, é um dos grandes atractivos da Feira. Sou totalmente a favor da liberdade de escolha do modelo do pavilhão. Os pavilhões da Leya, com uma luz estranha e desagradável no interior devido à cobertura vermelha, transmitiram-me, no entanto, a sensação de escassa variedade de títulos disponíveis. O espaço para as pessoas circularem no interior pareceu-me exíguo para tanta gente. O facto de os livros não terem preços marcados também se revelou uma grande falha.
Por outro lado, a D. Quixote estava a fazer desconto de 40% no primeiro volume de O Homem Sem Qualidades e só por isso já merecia um beijinho. Livros do Dia que não interessam a ninguém são um mal desnecessário.
Quanto às minhas compras, para além de Musil, Verão, de Edith Wharton (Relógio D’Água) e dois Nabokov a preços reduzidos: Na Outra Margem da Memória – uma autobiografia revisitada (Difel) e Aulas de Literatura (Relógio D’Água).
Muitas coisas ainda por explorar. Nem sequer me consegui aproximar dos saldos da Assírio&Alvim. No meio da multidão, Pedro Costa e Paulo Rocha, dois heróis do cinema português.

Indiana Jones
Sou fã. O meu preferido é o terceiro. Ainda hoje me comove a sequência que culmina com a descoberta do Graal: o «leap of faith» que Indiana Jones tem a coragem de dar sobre o abismo, a ponte invisível que se materializa sob as botas gastas do herói, o combate inesperadamente fácil com o cavaleiro imortal, os critérios da escolha do cálice.
Em todos os filmes, gosto da arquitectura dos cenários: túmulos, subterrâneos, túneis, passagens secretas, armazéns de acesso interdito. Sigo com muita atenção os momentos em que as personagens decifram instruções, resolvem enigmas e superam provas para chegar àquilo que procuram ou pensam procurar.
Deste quarto filme não saí totalmente decepcionada porque me agradaram a sequência nos armazéns americanos e a breve passagem pela aldeia de testes nucleares, a descoberta e a visita ao túmulo de Francisco de Orellana (decerto com uma versão mais longa a sair em DVD) e todo o percurso pelo templo das caveiras de cristal.
Hitchcock dizia que um vilão tem de ter charme e suscitar um mínimo de empatia, mas tudo indica que poucos foram os que aprenderam a lição. A personagem de Cate Blanchett, caricatural e histriónica, parece-me, neste sentido, totalmente falhada e excepcionalmente irritante. Um filme deste género depende muito da actuação de um adversário bem conseguido, essa guerra não foi ganha aqui e o filme como um todo saiu a perder.

São como as palavras
Já tinha lido sobre elas na blogosfera. Vi depois umas pessoas na televisão numa espécie de festival de cerejas no Porto, comentando os preços:
- Encontrei a dois euros e cinquenta num hipermercado. Comprei um quilo por cinco euros no Bulhão.
Uma senhora a dizer que ia comer sozinha uma caixa de cerejas inteira, depois de as fotografar e enviar as imagens para o Brasil.
Comprei a três euros e trinta, aqui em Lisboa, no sábado, enquanto uma adolescente, chocada, interpelava outra que usava a balança no supermercado:
- Vais gastar todo o dinheiro que tens em cerejas?

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Lemas de fim-de-semana

Uma questão de palavras, de fonte, de pele e de parte do corpo




Dickens, Kurt Vonnegut, Bjork, uma definição retirada de um dicionário, Leonard Cohen, Dylan Thomas, Harper Lee (To Kill a Mockingbird), e muito mais:

Na imagem, uma belíssima citação de Jeanette Winterson.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Un sandwich e un po’d’indecenza

Estive sem Internet. Quando a linha telefónica voltou já havia nova data para a Feira do Livro. Come mi Vuoi? e Lupi Spelacchiatti, do disco Tournée, em repeat, vou compondo mentalmente uma lista incompleta de compras a fazer: Musil, catálogo Griffith da Cinemateca, Deszo Kosztolányi, livro sobre aves de Lisboa…
Para quem estiver sem ideias e gostar de grandes narrativas com presença forte da natureza e do inumano, duas sugestões: A Saga de Gösta Berling, de Selma Lagerlöf, e Gente Independente, de Halldór Laxness, ambos da Cavalo de Ferro. Não são saídas recentes mas não deviam ser esquecidos.
Amanhã é feriado. Como não sou grande espingarda a italiano, percebo só algumas coisas que o Paolo Conte diz. Invento o resto.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Colecção de mãos

Não sendo um dos filmes de Hitchcock que prefiro, The Man Who Knew Too Much (1956) tem alguns momentos absolutamente geniais.
Uma das sequências mais inesperadamente belas do filme desenrola-se no mercado de Marraquexe. A dada altura, por entre o caos de comerciantes, carregadores, marroquinos e turistas de várias nacionalidades, chama a atenção das personagens uma perseguição. Apesar de inicialmente ser observada ao longe, esta desordem vai-se aproximando gradualmente dos protagonistas, a ponto de, depois de ser atingido nas costas com uma faca, o perseguido vir, inesperadamente, morrer nos braços de James Stewart, que só tem tempo de lhe amparar o rosto com as mãos.

A relação dos protagonistas com o incidente vai-se tornando cada vez mais próxima. No momento em que tenta pousar o incómodo corpo, James Stewart reconhece o homem, apesar de este aparecer disfarçado com trajes marroquinos e de ter o rosto coberto com maquilhagem.
É um momento imprescindível para a progressão narrativa do filme: antes de morrer, a vítima, que afinal é um espião, revela um segredo de de que dependerá toda a restante acção do filme. Nestes momentos cruciais, Hitchcock, no entanto, não hesita em recorrer a planos absolutamente destituídos de qualquer contributo especificamente narrativo.

As mãos de James Stewart sujas de maquilhagem, a mancha azul nas costas da mão do espião,

destacam-se como fragmentos desarticulados da continuidade da acção, manchas vazias, gratuitas, episódios sensoriais que captamos antes de percebermos exactamente para que servem, o que são.

Pouco depois, neste filme, já em Londres, também gosto muito da visita de James Stewart ao taxidermista, toda uma sequência desnecessária do ponto de vista da progressão narrativa.

Interpretando mal uma indicação, James Stewart, em busca de informações sobre o filho sequestrado, faz uma visita a uma pessoa que depois descobre ser o proprietário de um estabelecimento de taxidermia. A troca de mal-entendidos que se processa no estranho espaço, com os animais empalhados e as movimentações dos funcionários em pano de fundo, é absolutamente hilariante. A dada altura, proprietário e funcionários começam a desconfiar do inocente James Stewart e a discussão intensifica-se.

James Stewart, ainda mais confuso do que antes, vê-se obrigado a fugir. A acção principal do filme pode, então, prosseguir.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Always thinking about food


Glen Baxter move-se com grande frequência num universo de personagens de rosto relativamente inexpressivo, envergando roupa de tweed, de cowboy ou de explorador, mas grandes conhecedoras de teóricos da literatura polémicos, de profundas problemáticas da filosofia e de escritores perturbadores como Kafka.
Perante a associação inesperada entre texto e imagem nestes cartoons, é fácil darmos por nós a tecer relações vagamente duvidosas a partir de outras coisas que conhecemos (não só textos e imagens), a inventar histórias incongruentes, ainda que com remotas possibilidades de ocorrrência.



A mim, a fome da rapariga francesa deste cartoon sempre me fez recordar a voracidade sanguinária da menina do quadro de Magritte. Depois de descobrir que Glen Baxter é um grande admirador do pintor surrealista belga nunca mais deixei de acreditar que podia ser a mesma personagem, apenas mais velha, mais gorda, mais mal vestida e algo desorientada.


Gostar de pássaros a ponto de os ingerir crus nunca há-de levar ninguém muito longe, parece-me.

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