«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk

quinta-feira, 23 de abril de 2015

O Cinéfilo Preguiçoso




Desde fins de Dezembro de 2014, eu e o Alexandre temos estado a publicar um registo semanal das nossas aventuras cinematográficas.



27.4.2015 La Sapienza e Une Histoire Américaine (Eugène Green, 2014; Armel Hostiou, 2015)
21.04.2015 Carta de Uma Desconhecida (Max Ophüls, 1948)
14.04.2015 Roma, Cidade Aberta e Paisà (Roberto Rossellini, 1945; Roberto Rossellini, 1946)

6.04.2015 Na morte de Manoel de Oliveira

1.04.2015 The Outsiders (Francis Ford Coppola, 1983)

4.03.2015 Waking Life (Richard Linklater, 2001)
16.03.2015 L’Amour Est Un Crime Parfait (Arnaud e Jean-Marie Larrieu, 2013)

9.03.2015 Big Eyes (Tim Burton, 2014)
2.03.2015 Ida (Pawel Pawlikowski, 2013)

23.02.2015 Inherent Vice (Paul Thomas Anderson, 2014)

17.02.2015 The Future (Miranda July, 2011)

9.02.2015 Topsy-Turvy (Mike Leigh, 1999)
2.02.2015 The Theory of Everything (James Marsh, 2014)
27.01.2015 O Jogo da Imitação e Debaixo da Pele (Morten Tyldum, 2014; Jonathan Glazer, 2013)
9.01.2015 Sono de Inverno (Nuri Bilge Ceylan, 2014)
12.01.2015 Adeus à Linguagem (Jean-Luc Godard, 2014)

4.01. 2015 Mr. Turner (Mike Leigh, 2014)

29.12.2014 Tokyo Twilight  e E Agora? (Ozu, 1957; Joaquim Pinto, 2013)
22.12.2014 Boyhood (Richard Linklater, 2014)

16.12.2015 Lamentações gerais e Saint Laurent (Bertrand Bonello, 2014)

 

Imagens Proféticas e Outras


João Bénard da Costa. 2014. Crónicas: Imagens Proféticas e Outras. 3.º volume. Lisboa: Documenta.
 
 
            Publicado em 2014, o terceiro volume de Crónicas: Imagens Proféticas e Outras, de João Bénard da Costa (1935-2009), reúne textos que saíram na imprensa em 2006, complementando a série iniciada com a antologia de textos de 2002-2003 (primeiro volume) e continuada com textos de 2004-2005 (2.º volume). Em relação aos outros dois volumes de crónicas, há a assinalar em primeiro lugar uma revisão de texto mais cuidada. Pela negativa, no entanto, verifica-se a ausência incompreensível de um índice dos textos, ainda que haja um índice remissivo que demonstra a diversidade de interesses e referências do autor.
            É natural associarmos Bénard da Costa à cinefilia. Não só fez parte da direcção da Cinemateca, enquanto subdirector entre 1980 e 1991 e como director até 2009, como desenvolveu actividades culturais relacionadas. Muitos e belos são os textos que Bénard da Costa escreveu sobre cinema. Nestes volumes de crónicas, contudo, os textos mais interessantes não são necessariamente sobre cinema – ou não são só sobre cinema. Apesar de publicar crónicas em jornais, Bénard da Costa não se deixa seduzir pelos encantos efémeros da actualidade, preferindo antes tópicos que lhe parecem essenciais, ainda que pouco abordados por outros no mesmo meio. Neste terceiro volume encontramos crónicas sobre Cristina Campo, Mozart, Manoel de Oliveira, Richard Strauss, Richard Fleischer, Paulo Rocha, Sophia de Mello Breyner, Alida Valli, Tchekov, Bento XVI, John Ford, Elisabeth Schwarzkopf, a Arrábida e Tiziano, entre outros.
Os interesses de Bénard da Costa vão do erudito (pintura, música clássica, clássicos da literatura), ao concreto e pessoal (memórias da família, da vida em Lisboa ou das férias na Arrábida, descritas ao pormenor). O que mais surpreende e comove o leitor nestas crónicas é um conjunto de características difíceis de encontrar em alguém que viva nos tempos tão virtuais que vivemos. Entre estas características, temos não só o empenhamento em estar presente na própria vida, percorrendo os lugares, encontrando-se com as pessoas de que gosta, observando as obras de arte no espaço em que estão expostas, mas também a vontade de partilhar interesses. O empenhamento em viver e o desejo de partilha de interesses reflecte-se no tom de conversa e de narração destes textos, pontuado, quando menos se espera, por um sentido de humor ligeiramente autodepreciativo: «Parei um bocadinho, para bater na madeira, que ‘presunção de salvação sem merecimento’ é pecado contra o Espírito e nunca devemos presumir de mais./Mas encandeio com uma dessas histórias dos meus pesadelos e vejam se não tenho razão para eles.» (p. 231). Outro dos traços distintivos destas crónicas relaciona-se com a linguagem de Bénard da Costa: palavras e construções de outros tempos mas que se revelam imprescindíveis pela sua expressividade, não se destacando portanto como arcaísmos, mas sim como reactualizações e revitalização de expressões caídas em desuso.
Além da generosidade do tom, o mais aliciante nestas crónicas reside na facilidade com que Bénard da Costa estabelece relações entre elementos diferentes de um modo em que uns ajudam a esclarecer o valor imaginativo dos outros. Entre os textos mais interessantes deste volume destaque, por exemplo, para «O Medalhão Reencontrado» (35-39), em que a recordação de infância de uma visita com a avó a casa de uma senhora misteriosa leva o autor a evocar um medalhão que lhe passaram para a mão para se entreter, suscitando a seguir a evocação do primeiro Livro de Pintura que os pais lhe ofereceram e, com este, de Bronzino e dos retratos de Eleonora de Toledo. Noutro exemplo de recordações que se sucedem de modo idiossincrático, na crónica «O Gerânio na Janela» (133-137) convoca-se Dante Gabriel Rossetti em articulação com as figuras de Prosérpina, Kim Novak, a Carlota Valdés de Vertigo e Ellen Page no filme Hard Candy. Outra das crónicas mais sugestivas deste volume é aquela que se intitula «O que Não Tem Penas» (199-205), em que o conto «The Man Who Liked Dickens», juntamente com o filme pouco conhecido em que Nicholas Ray adaptou este texto de Evelyn Waugh para a televisão (High Green Wall, 1954), funcionam como ponto de partida para algumas reflexões sobre os diversos modos de recepção da literatura, culminando numa espécie de teoria da arte que é uma filosofia de vida: «Felizes os que amam um só autor [...] até ao fim e passaram esta vida breve sem sair dele.» (p. 201).
Muitos dos textos mais inspiradores e mais inesperados de Bénard da Costa têm a ver com o registo das memórias, como se verifica nos casos de «Memórias do Alfredo» (61-64) ou «No Sexto Aniversário da Minha Morte» (127-131). Entre estes, salientam-se as crónicas que Bénard da Costa escreveu sobre a Arrábida. Nas palavras do autor, a Arrábida converte-se num espaço mental encantado que de algum modo resiste a todas as agressões políticas, ambientais e turísticas, ao ponto de se tornar difícil associar a Arrábida de Bénard da Costa a qualquer outra imagem da Arrábida que possamos encontrar ou captar inclusivamente na própria Arrábida. É possível comprovar isto mesmo no filme Outros Amarão as Coisas que Eu Amei (Manuel Mozos, 2014). Sobrepor as palavras de Bénard da Costa a imagens da Arrábida gera uma disjunção estranha. Quem visitar a Arrábida depois de ler as crónicas de Bénard da Costa ficará ligeiramente desorientado ou perdido, de tal modo a Arrábida de Bénard da Costa e dos que o leram está associada às memórias do autor.
            Entre os textos deste volume dedicados à Arrábida, realce para «Arrábida, Outra Vez» (227-233), um clássico de Bénard na Costa na sua construção. Depois de referências à participação do autor na filmagem de um filme de Manoel de Oliveira, à apresentação de um livro sobre o Convento da Arrábida, ao fantasma de um monge que assombraria este edifício, e a um romance de Agustina cuja acção decorre na mesma região, Bénard da Costa descreve a «Lapa do Médico»: entre fragas e penhascos, um «buraco no chão, onde mal cabe uma pessoa» e que dá acesso a uma sucessão de galerias. A seguir, a atmosfera de tom de fadas da aventura perigosa que caracteriza o relato da visita que um dia fez a este espaço com os dois filhos e um sobrinho termina com a menção de uma perspectiva diferente do mesmo episódio: «Estava a passar férias connosco o Nuno de Bragança, que mantinha um diário. Muito mais tarde, li o que ele tinha escrito referente a esse dia: ‘À tarde, o João, com estarrecedora inconsciência, enfiou-se numa gruta e arriscou os nervos de três crianças para o resto da vida.’»
Nesta crónica sobre a Arrábida é evidente toda a singularidade dos textos de Bénard da Costa: o tom erudito, um pouco épico, um pouco lírico, quase a tocar a mitomania, articulado com a citação irónica de um ponto de vista que o equilibra e torna mais nítido; um conjunto de referências culturais incluídas não como pose exibicionista, mas porque são essenciais à própria noção de vida praticada e partilhada pelo autor. É importante descrever Bénard da Costa como escritor e não só como divulgador e comentador de cinema.



 
 

 

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