«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Dar a ver

A propósito de Au Hasard Balthazar, já me interroguei várias vezes se a ideia para o filme não terá surgido devido a um pormenor da tela Repouso Durante a Fuga para o Egipto, de Caravaggio.
Na famosa entrevista de Godard e de Delahaye, Bresson diz, a certa altura:
«[…] o ponto de partida foi uma visão fulminante de um filme em que o burro seria a personagem central.», «A ideia nasceu, talvez, plasticamente. Pois eu sou pintor. Uma cabeça de burro parece-me, a mim, algo de admirável. O plástico, sem dúvida. Pois, de repente, julguei ver o filme.».


A ligação com um passo de O Idiota, de Dostoievski, terá sido posterior, relacionando-se com o mecanismo formal de dar a ver através do ponto de vista deste animal. Falando sobre o livro de Dostoievski, Bresson considera «admirável» a ideia de «fazer ensinar um idiota através de um animal, que passa por idiota mas é de uma inteligência…», «Magnífica essa ideia de fazer dizer ao idiota, ao ver o burro e ao ouvi-lo zurrar: Aí está! Compreendi!…».

Azul-petróleo

As pessoas insistem em usar o telemóvel no metro, arriscando mal-entendidos, chamadas inúteis e interrompidas, segredos pessoais perante desconhecidos. Esta senhora trazia uma camisola num tom de azul muito bonito e devia ter cerca de 60 anos. Estava a falar muito alto, porque a outra pessoa, algures no mundo, quiçá à superfície, não a compreendia. Até ando a sonhar acordada, repetiu quatro vezes, cada vez mais alto, com veemência e um sorriso, espaçando progressivamente as sílabas. Depois, a chamada caiu, mas ela não pareceu nem irritada nem surpreendida.

But why should she walk shoeless, through all that water?

Vou avançando na leitura de Bleak House. Nesta minha leitura, que imagino que se vá prolongar pelo menos até ao fim do ano, sou de vez em quando surpreendida não só pela versatilidade estilística do autor, que, da opulência do campo às zonas mais miseráveis da cidade, não recua perante nenhum ambiente, mas também pela beleza de certas figuras menores, que, às vezes apenas devido a um gesto ou a uma atitude, se destacam, ganhando densidade inesperada.

As adaptações cinematográficas e televisivas de Dickens não lhe fazem justiça. Pegam naquilo que é menos interessante nos seus livros, as personagens menores mais tipificadas, e enchem o écran de actrizes e actores desfeados por caracterizações que os tornam disformes e repugnantes. A ironia, assim, não passa.
 
Uma das personagens que me chamaram a atenção dá pelo nome de Hortense. É criada de uma das personagens principais. A reacção dela perante uma humilhação que lhe foi imposta, num dado passo, pela senhora que serve, é suficiente para a individualizar.

Tinha estado a chover. A senhora vai-se embora de carruagem, deixando-a para trás:
«Her retaliation was the most singular I could have imagined. She remained perfectly still until the carriage had turned into the drive, and then, without the least discomposure of countenance, slipped off her shoes, left them on the ground, and walked deliberately in the same direction through the wettest of the wet grass.»

Pouco depois, também as outras personagens se vão embora, aproximando-se da casa onde mora a senhora. O capítulo acaba assim:
«We passed not far from the house a few minutes afterwards. Peaceful as it had looked when we first saw it, it looked even more so now, with a diamond spray glittering all about it, a light wind blowing, the birds no longer hushed but singing strongly, everything refreshed by the late rain, and the little carriage shining at the doorway like a fairy carriage made of silver. Still, very steadfastly and quietly walking towards it, a peaceful figure too in the landscape, went Mademoiselle Hortense, shoeless, through the wet grass.»

O capítulo acaba com uma figura menor, avançando descalça pela relva molhada, um episódio que poderia figurar num romance de Virginia Woolf, que nunca se interessou por figuras menores e estereotipadas, nem consta que fosse dickensiana.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Método para agilizar o espírito inventivo

Olhar para certas paredes com manchas de humidade, ou para pedras de coloração variável. Quem precisar de criar fundos deverá procurar descobrir nelas paisagens sagradas, adornadas de montanhas, ruínas, rochedos, bosques, grandes planícies, colinas, vales variados; mas também batalhas e estranhas figuras envolvidas em conflitos violentos, expressões faciais, e roupas, e uma infinidade de coisas que seja possível reduzir a formas completas e funcionais. Perante estas paredes, verifica-se o mesmo fenómeno induzido pelo som de sinos, poder ouvir-se em cada badalada todas as palavras possíveis e imagináveis.
Texto: Leonardo da Vinci
Imagem: Fred Ressler

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

Pela blogosfera fora

  • Se vivesse em Inglaterra, teria um jardim e faria parte de um grupo de birdwatchers. Como, porém, vivo em Lisboa, já fico contente por poder ler estes dois deliciosos blogues que narram aventuras e desventuras da jardinagem:
    - Bolbos em Flor;
    - Jardim com Gatos.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

As mãos bressonianas


Acho que não me enganei. Há um plano muito parecido com este, de Au Hasard Balthazar, no fim de Luzes no Crepúsculo, de Aki Kaurismaki.

Com um fogo lilás apontado ao coração

Devemos prestar atenção aos livros em saldo, aqueles que pouca gente quis. Marca de Água, de Joseph Brodsky, por exemplo, é um clássico dos saldos, e também um dos mais belos livros alguma vez escritos. Sempre que o vejo nessas condições, sofro fisicamente. Luto com a vontade de o distribuir na rua.
O primeiro livro de Sándor Márai que realmente me impressionou custou 2.50 euros. Intitula-se A Conversa de Bolzano (Teorema) e é um dos textos mais intensos que me lembro de ter lido. Até reli, depois disso, As Velas Ardem até ao Fim (D. Quixote), de que não tinha gostado assim muito, apesar dos elogios da crítica.
Passei, desde então, a ler fielmente tudo o que encontro de Sándor Márai. Entretanto, a D. Quixote publicou também A Herança de Eszter, que vale a pena, e, mais recentemente, A Mulher Certa, que tem uma capa horrível e 418 páginas, mas não deve ser remetido ao esquecimento. Em francês, encontrei também Les Révoltés (Le Livre de Poche).
A Mulher Certa divide-se em quatro partes. Com a História da Hungria no séc. XX como pano de fundo, a mesma história de amor é narrada por quatro das personagens que se viram envolvidas nela, mas - característica importantíssima, a meu ver - sem delírios faulknerianos gratuitos. A intriga assenta nos mal-entendidos que cada uma destas figuras acalenta não só em relação às outras, mas também relativamente a si mesma. Nestes mal-entendidos, o estatuto social e cultural de cada uma delas assume uma importância decisiva.
Uma das características que mais me agradam em Márai tem a ver com a sua capacidade de pôr a nu a ferocidade das personagens através de confrontos verbais que frequentemente tomam a forma de monólogos. Todas estas personagens são capazes de articular e defender veementemente a sua perspectiva da verdade, como se a sua sobrevivência dependesse disso, sem, no entanto, qualquer destas versões poder ser considerada definitiva pelo leitor, apesar da sinceridade e do fervor de todas elas. A noção de que é muito pouco aquilo que na realidade conseguimos perceber uns dos outros é, neste contexto, muito importante.
Como o título indica, neste livro, a questão da possibilidade de existir a «pessoa certa» para alguém é bastante explorada. Algumas personagens começam por acreditar que existe a «pessoa certa», para depois renegarem essa possibilidade. Outras vêem-se obrigadas a aceitar o conceito, apesar de à partida o terem considerado inválido.
Há também um passo sobre luvas muito interessante.

domingo, 25 de novembro de 2007

Boa tarde a todos, amigos e inimigos

Scénario du film Passion, no Museu do Chiado. Segunda vez. Em que Godard explica que a escrita foi inventada não pelos escritores mas pelos comerciantes, para fazerem o registo de compras e vendas. Três quilos e meio de ameixas, dois quilos de cenouras. Que a escrita do argumento, neste sentido, pertence ao domínio da contabilidade. O contabilista anota: uma personagem feminina, uma personagem masculina, e por aí adiante.

Godard não quis começar por escrever o argumento de Passion; preferiu vê-lo antes de o filmar, para ter a certeza prévia de que o filme existia.
A partir de imagens de alguns pintores (Delacroix, Tintoretto, Goya), uma possibilidade: talvez haja uma relação entre os gestos do trabalho, os gestos dos operários, e os gestos do amor.
A história começou a desenhar-se no vaivém entre a investigação dos gestos cumpridos numa fábrica e as mãos de uma tela de Tintoretto, enquanto Godard ficava na sombra, à espreita do som, à espreita da linguagem.
Trabalho, amor, cinema.
Quando, no argumento, a personagem do realizador reconheceu que não conseguia encontrar uma história para o filme que queria fazer, apesar de haver cinquenta histórias à sua volta, Godard deu o argumento por terminado.
«As pessoas têm coragem para viver histórias, mas não têm coragem para as inventar. É para isso que aqui estou

Uma boquilha de âmbar e um velho casaco forrado de coelho

Na cinemateca, antes de começar a projecção do filme, fazem às vezes, não sei se sempre, testes de legendas. Ainda com as luzes acesas, aparece um fragmento do diálogo sobre o écran. Por muito que nessa altura tentemos, não é possível prever o filme a partir do texto. São sempre outros os filmes que imaginamos a partir daquelas palavras. Reencontrar, depois, as legendas durante o filme não deixa, porém, de ser um prazer.
Há prazeres de luzes acesas e prazeres de luzes apagadas.
(No título deste post, palavras de um filme de Bresson.)

sábado, 24 de novembro de 2007

Sometimes you get up and bake a cake or something

Os meus gatos fazem o favor de me acordar todos os dias bastante cedo. (Não digo a que horas pois não pretendo suscitar compaixão.) Hoje, no entanto, a manhã estava tão bonita que não me importei.
Aproveitei para ir ver a exposição que está no Museu da Cidade, com fotografias de Martin Parr, Helmut Newton, Candida Höfer (de que tanto gosto), Thomas Struth, etc. O Museu da Cidade tem um dos jardins mais bonitos que conheço em Lisboa, apesar de ficar mesmo ao lado de um dos eixos mais inóspitos e desagradáveis da cidade.
Quando cheguei ao Pavilhão Negro, só lá estava, à entrada, a senhora da limpeza tentando impedir que as folhas secas entrassem no espaço da exposição através da porta entreaberta, enquanto dava de comer aos pavões, trocando dois dedos de conversa com eles. Havia um pavão branco pequenino. A senhora acendeu as luzes da sala para eu poder entrar.
Fotografia de Thomas Struth

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

Pela blogosfera fora

  • Discos com pássaros: outro.

quarta-feira, 21 de novembro de 2007

Pintar ou

Quase ninguém gostou do filme dos irmãos Larrieu. Por mim, gosto muito da oposição (?) inesperada no título e guardo na memória alguns momentos, nomeadamente a sequência do percurso nocturno através de uma floresta.
É depois de um jantar na casa do cego (Sergi Lopez). Quando William (Daniel Auteuil) e Madeleine (Sabine Azéma) se preparam para voltar a casa a pé, reparam que estão no campo e que o caminho de regresso não tem iluminação. Às escuras, não querem aventurar-se sozinhos por um caminho que desconhecem.
O cego oferece-se para os acompanhar a casa através de um atalho que conhece na floresta. Durante o trajecto, o ecrã fica negro. O cego vai descobrindo o caminho através dos sons, dos cheiros, e do número de passos: «Caminhamos agora junto ao rio, estão a ouvir a água? São 32 passos nesta direcção.», etc. Na escuridão, os que vêem descobrindo-se cegos. O sentido da visão tornado inútil pelo cinema.

terça-feira, 20 de novembro de 2007

O rapaz deitado em cima da cova

Numa fase de muitas leituras, entre um Dickens com oitocentas e tal páginas e outros livros menos recreativos, Andreas, de Hofmannsthal (Relógio d’Água, trad. Leopoldina Almeida), a conselho da Cristina.
Há muito que não encontrava um texto tão cinematográfico (no sentido de escrita com imagens), não só pela abundância de episódios com pormenores visuais insólitos, mas também devido aos jogos de planos, proximidades e olhares perceptíveis nalgumas cenas.
Penso, por exemplo, no momento em que Andreas, atrás de uma avelaneira, observa em segredo um dos criados a enterrar um cão na floresta, pressentindo depois, enquanto se detém em cima dessa sepultura improvisada, uma espécie de «mundo subjacente ao mundo real» (p. 55), na linguagem corporal contorcida do cavalheiro todo de preto que escrevia cartas numa esplanada (p. 70), ou no percurso que antecede a visita a Nina.
Este último episódio é particularmente rico: Andreas perde-se por ruas desconhecidas, encontrando-se de súbito numa igreja; na penumbra, uma mulher com um lenço negro na cabeça, ajoelhada num genuflexório, torcendo as mãos em atitude de súplica, é súbita e inexplicavelmente substituída por outra figura vestida de modo parecido, mas permanecendo de pé e olhando-o fixamente («Era como se as lajes do chão se tivessem aberto e tivessem engolido essa mulher atormentada, deixando porém em seu lugar aquela outra estranha criatura.», p. 79), que o seguirá depois pelas ruas de Veneza.

No episódio que decorre numa herdade durante a viagem de Andreas, há momentos em que se conjugam vários espaços em montagem paralela (o da personagem que escuta atrás da porta, as pessoas dentro do quarto, o cão no pátio): «Todos os sentidos dele estavam alerta e consegui distinguir a voz da mulher do lavrador, trançando o cabelo enquanto falava, e, ao mesmo tempo, o barulho que o cão fazia lá em baixo no pátio a devorar avidamente qualquer coisa (p. 38).
Do ponto de vista visual, a cena de despedida entre Andreas e Romana (p. 58-59) está particularmente bem construída. Andreas pressente a possibilidade de encontrar Romana no seu quarto já vazio, mas quando lá volta, vê essa expectativa gorada («No fundo da escada ficou ainda longo tempo à escuta, indeciso»). Desloca-se à cavalariça «sem mesmo o querer», para aí a descobrir. Este encontro procede por planos de proximidade e distância. Primeiro, um grande plano da boca dela («De início, ele mal se deu conta de que era ela quem estava ali, de corpo inteiro, na sua frente.»). Depois, uma inversão da visão tradicional do próximo e do distante: «Ela não se aproximou nem tão-pouco se afastou dele, estava-lhe tão próxima que mais parecia estar dentro dele e, por outro lado, dir-se-ia que nem o estava a ver.». A separação fica fora de cena: «Sem saber como, deu consigo sentado no carro já a ser puxado pelos cavalos.». Um pouco mais à frente, a narrração apoia-se claramente num modo de ver:
«Sentiu que bastava um olhar, desde que lançado de bastante alto, para unir tudo o que está separado […]. Romana era sua onde quer que estivesse, ela pertencia-lhe, fazia parte dele, onde e sempre que o desejasse. Aquela montanha que se erguia na frente dele, tentando, qual seta despedida, alcançar o céu, era para ele uma irmã e mais ainda do que uma irmã.» (p. 61).

Direito de resposta

sábado, 17 de novembro de 2007

Abrigos

A primeira vez que ouvi falar de Eva Lootz foi na exposição Entre a Palavra e a Imagem, em Abril deste ano, no Museu da Cidade.
A instalação de Eva Lootz intitulava-se Written Carpet e consistia num PVC em espelho em que tinha sido transcrito o último parágrafo de As Cidades Invisíveis, de Italo Calvino.

É possível encontrar na Internet imagens de vários trabalhos desta artista. Esta casa, por exemplo, chamou-me a atenção.
 



No jardim ao lado do Convento de Mafra, encontrei umas construções parecidas. Não sei se são abrigos de pássaros.

 

O último parágrafo de As Cidades Invisíveis (Teorema, trad. José Colaço Barreiros) diz assim:

«Há dois modos para não o sofrermos [o inferno dos vivos]. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio do inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar
 
 

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Direito de resposta

O Henrique arranjou-me este bico-de-obra. (Olá também para ti, Carla de Elsinore, e obrigada por não me teres nomeado, apesar de não ter servido de nada.) Os primeiros cinco filmes em que a tarefa me faz pensar. Não escrevi e é possível que nunca venha a escrever nada de jeito sobre eles.

- Mouchette, de Robert Bresson
- Uma Visita ao Louvre, de Straub-Huillet
- Conto de Inverno, de Éric Rohmer
- Livro de Cabeceira, de Peter Greenaway
- O Último Ano em Marienbad, de Alain Resnais

Aproveito ainda para agradecer todos os links e simpáticas mensagens de boas-vindas que me foram endereçadas via blogues ou email. Nice to be back.

Rogério Casanova’: muito importante a desmistificação da «falácia do artista torturado» (referida a propósito de Malcolm Lowry no Ípsilon).

A vida real das personagens

Recentemente, J. K. Rowling fez revelações sobre a orientação sexual de uma personagem dos livros Harry Potter, como se esta tivesse existência para além das páginas.
No primeiro volume de contos que A. S. Byatt publicou (Sugar and Other Stories, Vintage), há uma história sobre uma escritora que um dia conhece inesperadamente alguém que toda a gente diz ser uma espécie de encarnação do protagonista de um romance que ela escreveu. É uma história bastante sinistra.
No meu blogue anterior, certa vez, há anos, publiquei um excerto de um poema de uma escritora brasileira, lamentando o facto de não encontrar na Internet o texto integral. No dia seguinte recebi do Brasil um mail extremamente amável que transcrevia o poema na íntegra.
No ano passado, numa casual feira do livro da livraria da Faculdade de Letras, comprei por um euro um livro de John Banville. O livro intitula-se Fantasmas (Dom Quixote) e faz parte de uma trilogia, bastante perturbadora por sinal, protagonizada por um assassino especialista em arte. A dada altura, no texto, o protagonista invoca, muito de passagem, o nome da mulher amada.
Tenho óptima memória para informações totalmente inúteis mas fui à minha caixa de correio electrónico confirmar. A pessoa que me enviou o mail com o poema tinha o nome da mulher amada pelo assassino imaginado por Banville.
Ainda hoje guardo essa mensagem.

quinta-feira, 15 de novembro de 2007

Discos com pássaros






S. Francisco e os pássaros

Quando Francisco pregou amor aos pássaros,
Eles escutaram, esvoaçando lentamente
Pelo azul como um bando de palavras

Libertadas por graça dos lábios santos.
Depois voltaram atrás, ruge-ruge em torno da cabeça dele,
Arriscaram piruetas com hábitos da ordem.

Dançaram no ar, em jogos de puro prazer
E cantaram, como imagens prestes a partir.
Este foi o melhor poema de Francisco.

Verdadeiro, o argumento, ligeiro, o tom.

Seamus Heaney
(minha tradução)

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Let me know that at least she will try


Num dia destes, um pouco por acaso, veio-me ter às mãos um Best of dos Simon & Garfunkel, que comecei a ouvir distraidamente enquanto fazia outras coisas. Pelo menos até à canção Scarborough Fair, que não me lembrava de ter ouvido antes.
No início, nem sequer estava a perceber as palavras. O ritmo e a referência à feira levaram-me imediatamente a imaginar a névoa antes da manhã, preparativos dos vendedores organizando tudo antes dos primeiros clientes, frio, palavras de circunstância, chegadas iminentes, expectativa. Parsley, sage, rosemary and thyme?
Ainda estava a tentar recuperar da surpresa de isto ter sido escrito nos anos sessenta quando descobri que a canção dos Simon & Garfunkel se baseia numa balada inglesa com origem medieval.
A letra conta a história de alguém que recorda um amor antigo perante um ouvinte que vai à feira de Scarborough, pedindo-lhe para lhe dar um recado, se vir aquela que tanto amou noutros tempos. O que recorda diz que volta a aceitar a amada se ela realizar uma série de tarefas impossíveis: fazer uma camisa sem costuras, lavá-la num poço seco, encontrar um terreno seco entre o mar e o leito de areia, etc. Realizar estas tarefas impossíveis é a prova de amor que ele lhe exige. Mas se as tarefas são impossíveis, pode este amor alguma vez ser provado? (A questão da prova, da demonstração, interessa-me bastante. Poderão todas as coisas verdadeiras ser demonstradas?)

Muita gente já tentou decifrar o simbolismo dos elementos do refrão.
A salsa (parsley) era (e ainda hoje é) usada como auxiliar da digestão, contra os amargos de boca. A salva (sage) simbolizaria força e a resistência. O rosmaninho (rosemary) representaria fidelidade, amor e persistência da memória: em certos países, ainda hoje há o costume de as noivas levaram rosmaninho no cabelo no dia do casamento. O tomilho (thyme) seria um símbolo de coragem: certos cavaleiros traziam nos escudos a imagem do tomilho.
Contudo, há também quem lembre que estas ervas têm propriedades abortivas, pelo que este refrão pode ter sido usado como uma espécie de mnemónica desses fins.

Entretanto, fiquei também a saber que, antes da versão dos Simon & Garfunkel, já Bob Dylan tinha reparado nesta balada, inspirando-se nela para escrever e compor Girl from the North Country, que acho que também nunca tinha ouvido, mas ainda bem que já ouvi.

domingo, 11 de novembro de 2007

Fins-de-semana

Mosteiro de Alcobaça, uma visita desejada desde, há muito tempo, ter visto certa fotografia com Jorge de Sena, todo de preto, de pé na nave daquela Igreja, como uma espécie de divindade pouco compreendida.
Sou adepta de mosteiros vazios. Gosto dos jardins, do cheiro das árvores de fruto, das escadas em caracol, minúsculas e íngremes, desenrolando-se por vários andares, de imaginar os pensamentos dos monges e as passagens secretas dentro das paredes, das cisternas e de outras marcas de passagem da água. Gárgulas, por exemplo, e outras figuras menores. Por isso, também fiz por guardar algumas fotografias.

Desta vez, da água, só o rasto descendente pelas colunas. Ao ponto de algumas gárgulas terem achado por bem adaptar a sua função. De condutoras da água a pontos privilegiados de observação do céu, em rota ascendente do olhar.



Num corredor com alguns fragmentos sem indicação de origem, esta criatura de asas nos ouvidos e penas de pombo dentro da boca aberta, escondida, com ar de ter muita, muita sede.


Duas personagens secundárias, aguardando junto a uma porta atrás da qual talvez vivesse a luz.

No túmulo de Inês, alguns anjos tentando, em vão, acordá-la.
E, ao lado, uns sinos que, curiosamente, não me lembro de estarem ali quando tirei a fotografia.

sábado, 10 de novembro de 2007

Bordar a branco

A minha relação com os livros de Agustina não foi sempre a mesma.
A Sibila fazia parte do programa do 12.º ano quando eu andava na escola. Foi o primeiro livro dela que li. Transcrevi citações gigantescas do livro, páginas e páginas. Achei que Agustina era a maior escritora do mundo. Foi sempre a descer a partir daí. Fui lendo outras coisas dela e ficando cansada. Ganhei aversão à tendência aforística descontrolada, às frases virtuosísticas, no fundo desprovidas de conteúdo e tão fáceis de prever e de imitar. Esta aversão persiste ainda hoje. Durante muito tempo fui incapaz de ler três páginas de um livro dela sem repetir em tom acintoso algumas frases para a pessoa ao meu lado, que, sendo grande fã de Agustina, ficava obviamente consternada.
No ano passado, as coisas mudaram. Devorei A Ronda da Noite, fazendo o possível para não interromper a leitura, horas e horas consecutivas no sofá. Ainda que com moderação, tenho comprado outros livros de Agustina, entretanto, sou capaz de ver programas de televisão sobre ela sem ranger os dentes e li recentemente a autobiografia (O Livro de Agustina, Guerra&Paz), agora nas livrarias em formato user-friendly.

Admito que também gostei bastante deste relato. O que mais me interessou neste texto não foram propriamente as reflexões de Agustina sobre literatura e o que é o desejo da escrita (lugares-comuns como lutar com o anjo, como Jacob, e ficar com um aleijão, ou «entrar no coração das pessoas e beber-lhes o sangue», p. 74), mas os objectos e as pessoas com que a escritora se foi relacionando ao longo da vida e as descrições aparentemente inofensivas da existência nas diversas casas por que Agustina foi passando.
Objectos tão vulgares como o casaquinho de veludo preto da avó Justina (p. 20), o tapete de leão no quarto da mãe (p. 70), os vestidos que usava, o delicioso «chapéu das fitas a voar» («[A minha avó] Deu-me um chapéu caríssimo, de feltro branco com fitas que, ao voar, me causavam prazer. ‘O chapéu das fitas a voar' parece um nome para um livro que eu, qualquer dia, escrevo.», p. 45), as bonecas nas montras das lojas da Holanda, de preferência à Rapariga com Brinco de Pérola, de Vermeer (p. 60).
Pessoas como o pai, que «Dizia que eu podia ganhar milhões se escrevesse os segredos do mundo do jogo. Não com a publicação, mas porque me pagariam para não publicar o livro.» (p. 26). Como a mãe, uma daquelas «figuras de mulher assim, infelizes por espírito romanesco e que se arrependem a pretexto dos filhos e vão para casa bordar a branco e fazer compota.» (p. 56). Como as desconhecidas com quem trocava cartas («Não as considerava amigas, mas sim o pretexto para eu escrever mais e mais. ‘Eu não preciso de amigos, preciso de quem me leia.’», p. 67), ou Ferreira de Castro («dava-me conselhos como se retirasse do meu caminho pedras que eu gostava de pisar.», p. 73).
A dada altura, Agustina conta que leu muito jovem alguns livros considerados mais apropriados para adultos e ainda tentou penitenciar-se por estas leituras perante o seu confessor. Como este não lhes atribuiu grande importância, ela deixou de as confessar (p. 56). Parece-me às vezes que é precisamente nestas coisas, não confessadas porque subestimadas por todos os confessores, que aquilo a que costumamos chamar literatura pode estar.
Um dos momentos mais belos do livro é aquele em que Agustina conta como os pais se conheceram, aparentemente um episódio mundano insignificante, mas cheio de mal-entendidos deste género, ao ponto de haver nele não só literatura mas também cinema:
«Há uma cena num filme de Manoel de Oliveira, o Vale Abraão, em que um desconhecido, num restaurante lhe oferece um prato de figos. Foi assim que o meu pai abordou a jovem Laura, que estava vestida de preto, não por luto mas por promessa. […] Meu pai julgou que a jovem Laura do hotel de Entre-os-Rios era viúva. Como Byron, não gostava de meninas em flor, provavelmente porque são cheias de surpresas […].» (p. 37).

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

A lição da água e das flores cortadas


No Myspace, as principais influências detectadas na música de Laura Veirs são: o céu - estrelas, meteoros, galáxias - e coisas do mar - pássaros vogando pelo ar ou flutuando sobre a água.
Uma das canções dela de que mais gosto intitula-se precisamente Ocean Night Song. O refrão tem dois versos magníficos que me lembram sempre a Ofélia de Millais:

«Swimming with my fallen blossoms
I drink from the source above».
O quadro de Millais pode ser associado ao belíssimo passo de Hamlet em que a Rainha descreve as circunstâncias da morte de Ofélia (que ocorre fora de cena): a corrente de água («the glassy stream»), as flores que levava («her weedy trophies»), os cânticos que fragmentadamente entoava («snatches of old tunes»):

Queen:
There is a willow grows aslant a brook,
That shows his hoar leaves in the glassy stream.
There with fantastic garlands did she come
Of crowflowers, nettles, daisies, and long purples,
That liberal shepherds give a grosser name,
But our cold maids do dead men's fingers call them.
There on the pendant boughs her coronet weeds
Clamb'ring to hang, an envious sliver broke,
When down her weedy trophies and herself
Fell in the weeping brook. Her clothes spread wide
And, mermaid-like, awhile they bore her up;
Which time she chaunted snatches of old tunes,
As one incapable of her own distress,
Or like a creature native and indued
Unto that element; but long it could not be
Till that her garments, heavy with their drink,
Pull'd the poor wretch from her melodious lay
To muddy death.
Associo o refrão da canção de Laura Veirs ao momento em que as roupas de Ofélia se espalham pela água, permitindo-lhe transitoriamente flutuar e cantar. No quadro de Millais, Ofélia é devorada pelas águas. Laura Veirs, no entanto, inverte a situação, integrando a lição da água e das flores cortadas, engolindo-as à laia de inspiração.


(Imagem: pormenor do vestido de Ofélia)

O peito vermelho


Entre outras características, o grupo dos pré-rafaelitas distinguia-se por defender a uma enorme atenção a todos os pormenores constituintes da tela. A paisagem em fundo devia ser trabalhada com o mesmo cuidado que a figura principal.
Millais demorou cerca de nove meses a concluir a sua Ofélia. Pintou o maravilhoso fundo junto ao rio Hogsmill, no Surrey. A figura feminina (para a qual posou como modelo Elizabeth Siddal, descoberta um dia a costurar numa modista de chapéus, e que viria casar com Dante Gabriel Rossetti) foi trabalhada no estúdio do pintor.
O facto de Millais ter pintado durante cinco meses no exterior e a circunstância de ter querido incluir na imagem flores referidas na peça explicam que encontremos no quadro flores que abrem em diferentes alturas do ano.
Gosto muito de todas estas flores, sobretudo por formarem um conjunto inverosímil do ponto de vista temporal, mas o meu pormenor preferido é o pisco-de-peito-ruivo («robin redbreast» em inglês) junto ao canto superior esquerdo. É possível que Millais tenha ido buscá-lo a outro passo célebre (cena V do acto IV) de Hamlet, aquele em que Ofélia, igualmente transportando flores e entoando cânticos sinistros, a dada altura diz: «For bonny sweet Robin is all my joy.».
Não é só por gostar de pássaros que prefiro este pequeno elemento. É que, numa imagem com tantos pormenores, este pisco solitário passaria facilmente despercebido. Se não fosse pelo peito vermelho.

Sabia que...

o postal que representa este quadro de Millais é o mais vendido da loja da Tate Gallery?

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