«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk

sábado, 22 de dezembro de 2007

Fico sem acesso à Internet a partir de hoje até mais ou menos à segunda semana de Janeiro.
Desejo a todos que sobrevivam às festas para que possamos reencontrar-nos em 2008.
Na imagem, boneco de neve exemplificando o espírito contorcionista essencial à quadra, de David Shrigley.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

Wittgensteiniana light

Depois de Dickens, terminado antes do prazo previsto, sinto-me a maior leitora do mundo. Alimento inclusivamente o projecto megalómano de levar até ao fim a leitura das 776 páginas de Gravity’s Rainbow, de Thomas Pynchon, aliado ao objectivo irrealista de conseguir passar alguns momentos sem pensar obsessivamente em determinadas questões (teóricas e argumentativas) que tenho de resolver. Entretanto, vou-me entretendo com os parágrafos de Cultura e Valor, de L. Wittgenstein (Edições 70, trad. Jorge Mendes), um livrinho muito interessante e de leitura um pouco menos exigente do que o Tractatus ou as Investigações Filosóficas.

Nem de propósito, encontrei o seguinte apontamento na página 62:
«Em toda a grande arte há um animal SELVAGEM: domesticado

E articulei de imediato esta frase com um parágrafo na página 59:
«A medida do génio é o carácter – embora o carácter, por si só, não seja equivalente ao génio. O génio não é o ‘talento mais o carácter’, mas o carácter que se manifesta sob a forma de um talento especial. Assim como um homem manifestará coragem ao saltar à água para socorrer alguém, outro manifestá-la-á escrevendo uma sinfonia.».

Gostei da analogia entre arte e coragem ao ponto de ousar avançar com a possibilidade de ser o medo o animal selvagem que a arte tem de domesticar. Parece-me, contudo, que Wittgenstein concebe este processo de domesticação num sentido delicado e particular. No sentido em que qualquer perda ou dano infligido pelo processo à verdadeira natureza (selvagem, recorde-se) do animal poderá revelar-se trágico e fatal.

Imagem: rabbit or duck?

Pas dire mais seulement montrer

Pois, pois. Lá falar, falo. Não digo é nada de jeito, pois tenho a cabeça praticamente em frangalhos devido a uma coisa que tenho de entregar amanhã. Estou com pena de não conseguir articular pensamentos, pois o filme é mesmo muito bonito, cheio de encontros e desencontros através dos caminhos ínvios do tempo e de uma cidade. É engraçado que fales da réplica cinematográfica que fabricaste, porque o próprio filme está cheio de réplicas e de duplos. Lola, bailarina de cabaré, é também Cécile, a adolescente da livraria, prestes a fazer 14 anos.
Gostava também (e muito) de conseguir dizer alguma coisa sobre Lettre à Freddy Buache, a curta-metragem de Godard (tão abstracto e intelectual a falar de cinema e, ao mesmo tempo, tão comovente) que precedeu o filme de Demy, mas nada.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

Livros que já li


Um dos momentos mais inesquecíveis de Bleak House, de Dickens, é aquele em que Esther Summerson, a protagonista, visita pela primeira vez a casa de Miss Flite. Miss Flite, que colecciona pássaros, vive no terceiro andar de um edifício pertencente à bizarra personagem que ocupa o rés-do-chão com uma gata bastante antipática chamada Lady Jane. (No segundo andar vive outra misteriosa figura, viciada em ópio, que mais tarde se descobrirá ser o pai de Esther.)
O dono do edifício tem uma loja muito estranha, onde tudo se compra e nada parece estar à venda. Quando Esther lá chega, o nevoeiro está tão denso e a atmosfera tão escura que se não fosse o proprietário estar a mover-se lá dentro com uma lanterna acesa, nada do interior seria destrinçável. Gosto muito do inventário que a lanterna acesa permite. Garrafas, tinteiros, papelada inútil, livros velhos, pergaminhos, sacos usados, chaves, farrapos, ossos:

«She had stopped at a shop over which was written "KROOK, RAG AND BOTTLE WAREHOUSE." Also, in long thin letters, "KROOK, DEALER IN MARINE STORES." In one part of the window was a picture of a red paper mill at which a cart was unloading a quantity of sacks of old rags. In another was the inscription "BONES BOUGHT." In another, "KITCHEN-STUFF BOUGHT." In another, "OLD IRON BOUGHT." In another, "WASTE-PAPER BOUGHT." In another, "LADIES' AND GENTLEMEN'S WARDROBES BOUGHT." Everything seemed to be bought and nothing to be sold there. In all parts of the window were quantities of dirty bottles—blacking bottles, medicine bottles, ginger-beer and soda-water bottles, pickle bottles, wine bottles, ink bottles […]. There were a great many ink bottles. There was a little tottering bench of shabby old volumes outside the door, labelled "Law Books, all at 9d." […] There were several second-hand bags, blue and red, hanging up. A little way within the shop-door lay heaps of old crackled parchment scrolls and discoloured and dog's-eared law-papers. I could have fancied that all the rusty keys, of which there must have been hundreds huddled together as old iron, had once belonged to doors of rooms or strong chests in lawyers' offices. The litter of rags tumbled partly into and partly out of a one-legged wooden scale, hanging without any counterpoise from a beam, might have been counsellors' bands and gowns torn up. One had only to fancy, as Richard whispered to Ada and me while we all stood looking in, that yonder bones in a corner, piled together and picked very clean, were the bones of clients, to make the picture complete.»

Imagem: Booknest, de Rosamond Purcell (The object consists of two books, fused together and partly transformed by mice into a nest. Describing this image, Gould makes much of the object's in-between status, taking it as a touchstone for a world in flux.)

Conversas de livraria

No magnífico filme Lola, de Jacques Demy, uma mãe entra numa livraria com a filha adolescente. Dirige-se ao vendedor:

- As suas duas últimas sugestões não foram muito apropriadas.
- Então porquê?
- No primeiro livro, um engraçadinho tinha escrito a lápis o nome do assassino na página treze. Quanto ao segundo, nem sequer posso emprestá-lo à minha filha porque está cheio de imoralidades.
- Mas era de um escritor tão bom e tão considerado…
- Pois é como lhe digo. Fiquei um pouco chocada. E, de qualquer modo, o que hoje procuro é um dicionário de francês-inglês.


(Esta conversa deliciosa não acrescenta nada à acção do filme. Aparece ali apenas para que uma das personagens masculinas, leitor impressionável, possa travar conhecimento com estas figuras femininas.)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Livros que (ainda) não li

Invejo muitas vezes aquilo que se publica em língua inglesa, sobretudo livros sobre temas inesperados. Quem não sonha, por exemplo, poder um dia comprar o diário de alguém que, tendo lido o conto «The Swimmer», de John Cheever, decide viajar pela Grã-Bretanha para nadar em todas as correntes de água ao ar livre que encontrar, relatando pormenorizadamente essas experiências e todos os pensamentos por ela suscitados?
Este livro, por incrível que pareça, existe mesmo; foi escrito por Roger Deakin e intitula-se Waterlog. Nele se descrevem com conhecimento pessoal não só piscinas naturais, lagos, ribeiros, rios, regatos, riachos, fossos e até um canal, mas também a fauna e a flora que deles fazem parte, e as vidas das pessoas que moram nas cercanias. Há momentos em que o autor nada através de algas, convive com libelinhas, observa a chuva a cair Rain calms water, it freshens it, sinks all the floating pollen, dead bumblebees and other flotsam. […] The best moments were when the storm intensified, drowning birdsong, and a haze rose off the water as though the moat itself were rising to meet the lowering sky.»), tem de afastar tudo o que flutua à superfície das águas para poder emergir.
Segundo testemunho de amigos, Roger Deakin tinha a secretária cheia de objectos como pedras ou pedacinhos de madeira à deriva que tinha encontrado nestas correntes em que nadara. Dizia que estes objectos lhe lembravam que ainda estava vivo. Quando, certa vez, um amigo quis inadvertidamente deitar ao lixo umas folhas secas que encontrou algures em casa dele, foi recordado com alguma firmeza que «nothing is ever really dead, and anyway there is another way of seeing them now they no longer have the burden of growing».
(Ler um excerto aqui.)

domingo, 16 de dezembro de 2007

Acasos de Natal

No meio do caos, espreito as compras dos dois rapazes à minha frente na fila para pagar na Fnac Chiado.
O mais baixo leva só um DVD: Esboços de Frank Gehry, de Sidney Pollack. O outro vai mais carregado: para além da edição especial de Blade Runner e do último disco dos Sigur Rós, tem nada mais nada menos do que 3 (três) exemplares do livro Travels in the Scriptorium. Das duas uma: ou se tratava de um forte candidato à categoria de fã número um de Paul Auster, ou descobri ali um espírito prático, pequena e rara preciosidade nesta quadra.
(Imagem: Decorações da Regent Street no Natal de 1957)

sábado, 15 de dezembro de 2007

O Natal em que o Príncipe Carlos escreveu aos Amiss

Folheando alguns jornais ingleses em papel, divirto-me com as diferenças relativamente aos portugueses. O formato e a estrutura organizativa são bastante semelhantes, para não dizer idênticos, mas em Inglaterra há muito mais colunas assinadas por mulheres e até maior presença feminina nas fotografias. É um traço distintivo que salta à vista.
Depois, há também artigos que dificilmente encontraríamos num jornal português. Por exemplo, na página cinco do The Times de quarta-feira, uma notícia cheia de pormenores deliciosamente narrativos e, à sua maneira, natalícios.
O assunto é o assalto a uma quinta no Devon onde eram criados os gansos caseiros comercializados sob a marca do Príncipe de Gales. Os ladrões roubaram 350 aves adultas, incendiando depois o capoeiro, sem se preocuparem com os mais pequeninos que lá ficaram. O incêndio foi detectado às quatro da manhã.

O Príncipe de Gales escreveu a Rona and Nevil Amiss, proprietários da quinta, para lamentar o sucedido. Claramente afectados pelo choque e pelo desgosto, Rona e Devil declararam não se sentir preparados para a criação de mais gansos num futuro próximo. Também os quatro filhos do casal (Elsa, de nove anos, Alfred, com sete, Dora, com quatro, e Percy e Harold, com três) estão muito tristes, sobretudo devido à morte cruel dos mais pequeninos.
Na opinião dos proprietários, os ladrões estariam muito bem informados sobre a quinta; o assalto foi planeado com astúcia: as aves tinham atingido o peso ideal e seriam abatidas e depenadas no dia seguinte.
Os supermercados Sainsbury’s ficaram sem gansos caseiros para vender no Natal. E lá se foram trinta mil libras.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

O problema



O problema não é falarmos dos que não lemos.
Isso é fácil.
O problema é falarmos dos que já lemos.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

Em cheio

Serão animais selvagens ou domésticos, as setas?
Apesar de ter mudado de endereço e de título de blogue, continuo a encontrar referências a elas por todo o lado. (Até nas Investigações Filosóficas, de Wittgenstein, há algumas reflexões sobre o tema.)
Ontem, por exemplo, observei estas ocorrências no conto «O Burguês Enfeitiçado», do livro Pânico no Scala, de Dino Buzzati (onde, estranhamente, também há um conto com o título «A Terrível Vingança de um Animal Doméstico»):

«Mas ele não reparava nas pessoas, fechado intensamente em si mesmo. E nenhuma das pessoas que passava notava que no meio do peito ele tinha uma seta espetada. Uma vareta perfeitamente torneada, duma madeira aparentemente duríssima e de cor escura, saía-lhe da camisa quase uns trinta centímetros, no centro de uma mancha de sangue. Os olhos de Gaspari fixavam-na com um horror moderado, devido a uma estranha felicidade que se lhe interpunha. Tentara extraí-la mas doía-lhe muito: arestas laterais deviam retê-la dentro das carnes. E da ferida, de vez em quando, borbotava sangue. Sentia-o descer pelo peito e escoar pelo ventre, estagnando nas dobras da camisa.
[…]
Dissera a uma porta secreta abre-te, julgando-se quase brincar, mas a porta abrira-se verdadeiramente. Dissera selvagens e assim acontecera. Seta, por brincadeira, e verdadeira seta o matava.»

Animais domésticos

Félix Valloton

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Pela Internet fora

  • Já que abordas esse assunto que não me interessa mesmo nada, abriu uma Oficina de Chocolate em Telheiras. Ainda não conheço bem as funcionalidades do sítio, mas o estabelecimento tem uma porta de vidro: por trás do balcão está um senhor de aspecto solene, envergando roupagem de porteiro de hotel de luxo.

Chocolate-covered

Leio num artigo do Daily Telegraph que o chocolate preto tem atributos escondidos, como magnésio e antioxidantes, que permitem que o cérebro receba mais oxigénio e se torne mais ágil.
Entre as estratégias a que os Maias recorriam para desencadear visões que os pusessem em contacto com os antepassados estava o consumo excessivo de chocolate. (Outras hipóteses seriam cortar-se e sangrar bastante, e ingerir substâncias eméticas ou beber até cair para o lado de modo a induzir vómito abundante.)
Douglas Coupland revelou que come chocolate, tanto antes de ir para o ginásio como antes de começar a escrever, com o objectivo de acelerar o processo de libertação de endorfinas e poder começar a sentir prazer logo no início da prática de ambas as actividades, o que o impede de desistir Baker's milk chocolate chips, which come in 300g bags - the chips used in chocolate chip cookies. Without these chips, there is no work. It's that binary. I keep them to the left of my keyboard and I eat maybe 50 or so medicinally once a day»).
E eu não tenho dúvidas de que ando a consumir intensamente os chocolates errados.

domingo, 9 de dezembro de 2007

O mal-entendido

A curta-metragem Un Lever de Rideau, de François Ozon, passou no Indie Lisboa deste ano e baseia-se no texto Un Incompris, magnífica comédia em um acto de Henri de Montherlant, em que algumas ameixas assumem um papel decisivo.
Numa entrevista sobre este filme, Mathieu Amalric fala da discrepância física («la différence incroyable», «ce décalage physique [...] vraiment saisissant») visível entre a figura dele e as de Vahina Giocante e Louis Garrel, que formam o par principal. Enquanto, segundo Amalric, no filme, estes dois parecem belos como estátuas gregas, com pele de alabastro, ele aparece com a barba por fazer e o ar gasto e desencantado de quem já perdeu muita coisa.

Quando, porém, vejo Amalric ao lado de Louis Garrel, que é, de facto, um homem bonito, Amalric parece-me muito mais interessante. Não é o ar: nunca tive grande paciência para o tipo «gasto e desencantado» (e não diria sequer que é esse o ar aqui). Acho que tem a ver com a voz e a respiração de Amalric quando pronuncia palavras como fatigue ou lassitude.

And still counting

Lear's limericks often evoke wonder as a response to the world. Here the young lady of Firle stares ecstatically out of the picture, her hands are open, her arms outflung, and her hair embraces the world.

sábado, 8 de dezembro de 2007

Cristina, sem querer sugerir que há uma relação de causa/efeito entre Caravaggio e Bresson, como achaste melhor salientar, mais um pormenor de Caravaggio que outra entrevista de Bresson, desta vez a Michel Ciment, me fez lembrar.

Num passo da entrevista, Bresson refere-se aos planos, muito criticados por alguns, de pernas de pessoas sobre os passeios em L’Argent, lembrando comentários depreciativos semelhantes a propósito de planos de patas de cavalos em Lancelot du Lac.
(Para Bresson, estes planos têm a ver com uma questão de ponto de vista e de percepção: «In everyday life, we often look down at the ground as we walk, or perhaps a bit higher, but we don’t necessarily look everyone full in the face […]». No caso específico de Lancelot du Lac, queria sobretudo chamar a atenção para a força muscular dos animais.)
A referência a estes planos de Lancelot du Lac trouxe-me à memória A Conversão de S. Paulo, de Caravaggio, onde também a metade inferior do cavalo é bastante enfatizada.



Há uma história engraçada a propósito deste quadro de Caravaggio. A Conversão de S. Paulo foi uma encomenda da Igreja de Santa Maria del Popolo. Quando concluído, chegou a ser considerado um pouco provocatório pelo facto de o cavalo ocupar quase todo o espaço da tela, em detrimento da figura do santo.

Conta-se que um padre dessa igreja perguntou a Caravaggio: «Por que razão colocaste o cavalo no centro e S. Paulo por terra? Este cavalo é Deus?».
Ao que Caravaggio terá respondido: «Não, mas está na luz de Deus».
Não sei se Bresson conhecia o episódio, mas palpita-me que teria gostado desta resposta.

Uma questão de beleza

No Ípsilon desta sexta, uma entrevista muito interessante a Zadie Smith.
Zadie Smith, para além de ser uma mulher lindíssima, reflecte sobre literatura de forma muito inteligente. Veja-se, por exemplo, o contraste que faz entre uma certa família literária mais próxima de Kafka, Camus, Dostoievski, e outra, em que insere autores como George Eliot, E. M. Forster, Jane Austen ou (parcialmente) Henry James.
O meu problema com On Beauty / Uma Questão de Beleza, descrito pela autora como uma homenagem à segunda família literária, por ela associada «à convicção de que, no fim, os agentes racionais hão-de conseguir o que é melhor para eles», talvez se relacione com as expectativas erradas que este tipo de apresentação pode suscitar.
É possível que Zadie Smith se venha a tornar uma grande escritora. On Beauty, no entanto, apesar de competente, é um romance absolutamente mediano. Por si só, ser mediano e competente não tem nada de mal. O problema reside no confronto que é proposto à partida com os livros dos autores citados. No fim de On Beauty, é inevitável a sensação de que as horas gastas com esta leitura teriam sido mais bem passadas quer com George Eliot, grande escritora muito pouco lida entre nós, quer com Forster ou até com algum Henry James.
Poderia também falar da presença totalmente decorativa de Rembrandt na narrativa, mas fiquemos por aqui.

Já agora, só uma pequena chamada de atenção. Neste artigo, a dada altura, é erradamente atribuído o género masculino à escritora A.S. Byatt do Richardson ao AS Byatt»). Convém ter mais cuidado com estas coisas.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

Eu hoje estou a ouvir em repeat


Thinking and Acting, da banda sonora do filme Le Vent de la Nuit.
A banda sonora é de John Cale, o filme, de Philippe Garrel.
Nunca vi o filme mas, pela amostra do título e da banda sonora (com que tenho uma relação antiga e pouco saudável), é provável que ou vá gostar muito dele ou detestá-lo, quando finalmente o vir.

Ao lado dos livros

No conto «Sótão», da antologia Pânico no Scala (Cavalo de Ferro, trad. Carlos Leite), do excelente Dino Buzzati:

Dispus-me, assim, a subir ao andar superior, ao sótão, onde tenho o atelier; ao lado, em três arrecadações, estavam amontoados os detritos da vida passada: livros, quadros, móveis, tapetes, brinquedos, baús, bicicletas. A arrecadação dos livros velhos, a mais pequena das três, tinha um aspecto dum corredor estreito, de altura decrescente por causa da inclinação do telhado, e era iluminada por um minúsculo postigo redondo, aberto no próprio telhado. […]
Peguei na chave, subi a escadinha em caracol e quando cheguei lá cima fiquei surpreendido com um odor especial, de modo nenhum desagradável, mas no entanto bem diferente do aroma repousante das coisas velhas que aí costumava encontrar. Era um perfume fresco e penetrante, que se acentuou quando me aproximei da arrecadação dos livros.
Compreendi qual era a sua origem mal abri a porta. No meio das pilhas dos livros, alinhadas ao longo das paredes, estava um grande monte de óptimas maçãs […].
[…] Quem poderia tê-las trazido cá para cima?


 

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

Como no poema de Drummond

Os interesses de Ferdinand Cheval, outro carteiro, relacionavam-se mais com a arquitectura e com os contos de fadas. Certo dia, quando distribuía o correio a cavalo, Cheval reparou numa pedra com uma forma pouco usual e decidiu levá-la. Foi recolhendo, noutros dias, mais pedras da zona.
Há muito que Cheval sonhava com um palácio de conto de fadas, com grutas, torres, jardins, castelos, museus e esculturas. Nos anos seguintes, trabalhou como carteiro de manhã e como arquitecto e construtor de tarde e de noite, concretizando com as próprias mãos, e a partir das pedras que ia encontrando pelo caminho, o projecto que há tanto tempo lhe ocupava o pensamento.
A construção prolongou-se também pelos seus anos de reforma, combinando características de templo khmer, mesquita, santuário hindu, castelo feudal, chalé suíço e presépio de Belém.
Uma placa no edíficio diz assim: 1879-1912: 10 000 dias, 9 300 horas, 33 anos de labuta.

terça-feira, 4 de dezembro de 2007

Bibliotecas


Devido ao impressionante compêndio de bibliotecas que encontrei aqui, fiquei muito interessada na Biblioteca de Chetham, em Manchester.
Quem já visitou diz que se deve procurar a rua da catedral da cidade. Lá perto estará um edifício com uma placa identificativa. Depois de se dizer ao porteiro que se deseja visitar a biblioteca, ele dá-nos um autocolante para a t-shirt ou o casaco e algumas instruções: atravessar o parque de estacionamento, abrir o portão negro, tocar à campainha da primeira porta. Alguns minutos depois aparecerá alguém com quem se deve subir umas escadas.
Só então se chega à biblioteca.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2007

É assim a glória do mundo

Morreu Richard Leigh.
E quem, por amor de deus, era Richard Leigh?
Richard Leigh era um dos autores do livro Holy Blood, Holy Grail (1982), segundo o qual Jesus Cristo teria tido um filho com Maria Madalena, com descendentes até hoje.
Esta teoria lembra qualquer coisa? Também O Código Da Vinci (2003) lembrou qualquer coisa a Richard Leigh. Ao ponto de Richard Leigh processar Dan Brown, acusando-o de plagiar a «arquitectura» de Holy Blood, Holy Grail em O Código Da Vinci.
Nos jornais, por isso, os títulos dos obituários não identificam Richard Leigh pelo nome. Richard Leigh deixou de ser Richard Leigh para passar à História como o homem que processou Dan Brown.

sábado, 1 de dezembro de 2007

Dicionário ilustrado

Num documentário, ontem à noite, sobre o fotógrafo Yann Arthus-Bertrand, autor das célebres imagens de La Terre Vue du Ciel, a dada altura o fotógrafo fala desta imagem que decidiu escolher como símbolo do projecto. Foi na Nova Caledónia que encontrou, por acaso e sem ter planeado, a ilha em forma de coração. O piloto com que estava a trabalhar decidiu mostrar-lha do ar, por achar que o sítio lhe podia interessar.
No filme, Yann Arthus-Bertrand diz que logo que avistou a ilha ali de cima percebeu que aquela imagem se ia tornar um símbolo pessoal: bastou-me tirar a primeira fotografia para sentir vontade de regressar.
Entretanto, segundo o documentário, o fotógrafo voltou à ilha dez anos depois. O sítio estava muito diferente, com menos contrastes e cores menos vivas. Mas já seria de esperar, comentou ele, em dez anos quase tudo muda: o que tenho a fazer é regressar daqui a outros dez anos.
Os meus (dez) anos de lexicografia não perdoam: acho que há uma definição de amor nesta vontade de regresso àquilo que conhecemos e temos, ainda quando o conhecemos e temos, apesar de bem sabermos que as suas propriedades se podem transformar.

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