«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk

terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Forma de Vida #1




A minha colaboração foi uma recensão do livro As Minhas Lembranças Observam-me, de Tomas Tranströmer.


Tendo em conta que o autor de uma autobiografia tem acesso privilegiado à consciência do objecto de escrita, seria de esperar que numa autobiografia houvesse mais espaço para sentimentos ou apontamentos de carácter subjectivo do que numa biografia. E, no entanto, muitos biógrafos se deixam tentar por especulações de cariz psicologista com resultados variáveis, talvez por pensarem que sem isso não obtêm um retrato completo do biografado, enquanto neste volume de prosa Tomas Tranströmer (n. 1931), prémio Nobel da literatura em 2011, conta a sua vida até à adolescência (a última data mencionada é o ano de 1948, teria o poeta 17 anos) sem grandes preocupações sentimentais e destacando elementos tão objectivos que, sem o olhar específico que os refere, poderiam ser descritos como triviais.

O título do livro – As Minhas Lembranças Observam-me – é bastante expressivo na sugestão não só da importância da especificidade do olhar, mas também do movimento de exteriorização de coisas interiores levado a cabo neste texto. Tranströmer descreve-se a partir do exterior logo desde o título, ao ponto de desligar de si o que há de mais subjectivo (as lembranças), para as situar de fora, como simples coisa concreta entre as outras através das quais se foi definindo a sua vida. Verifica-se deste modo  alguma sabotagem entre os pólos da dicotomia público/privado. O privado torna-se público através de coisas partilháveis, como, por exemplo, um professor de liceu  entrar na sala de aula com um cogumelo na mão («Pousou-o na secretária. Libertador e chocante – tínhamos vislumbrado alguma coisa da vida pessoal do Målle! Apanhava cogumelos!», p. 61). De modo semelhante, para falar de um amigo que teve na escola, Tranströmer descreve a sua família, os seus interesses e as suas colecções (p. 54).

Se há neste livro referências a sensações ou sentimentos, estas aparecem sempre subordinadas a elementos concretos e localizados. Por exemplo, no percurso que o poeta efectuava habitualmente entre casa e liceu, a recordação mais nítida é 0 surpreendente cavalo que todas as manhãs ele encontrava a comer palha de um saco pendurado ao pescoço no caminho para a escola: «Era um cavalo de tiro –  um cavalo das Ardenas – , grande, fumegante. Passava por um instante ao alcance do seu odor, e ainda hoje tenho bem viva a recordação daquele animal paciente e do cheiro que exalava no frio húmido. Um cheiro que era ao mesmo tempo sufocante e reconfortante.» (p. 54).          

Os lugares pelos quais o poeta vai passando em percursos reais ou imaginários estabelecem as coordenadas do seu retrato. Lugares como Kungsholmen, de que o narrador ouviu falar numa conversa entre vizinhos da casa ao lado, para depois ficar a saber que aí se situava o edifício da polícia (pp. 15-16), ou Eslöv, o local de onde era uma empregada da família  (pp. 15-16), a propósito do qual Tranströmer comenta: «ainda hoje sinto qualquer coisa de especial quando passo, de comboio, na estação de Eslöv. Mas nunca desembarquei nesse lugar mágico.» Do mesmo modo, na relação especial entre o poeta e o Museu de História Natural, uma das recordações mais nítidas é das caminhadas para o edifício «sempre com vento, sempre com o nariz a pingar e os olhos a lacrimejar» (p. 23).

Com a importância do espaço neste relato articula-se directamente o interesse do autor por geografia, reflectido nas suas leituras e actividades da infância e adolescência, designadamente o Verão que dedica a expedições imaginárias em África usando um mapa para se orientar (p. 49).

            Um dos lugares mais importantes na geografia do jovem Tranströmer era sem dúvida a biblioteca de um centro cívico em que também se situava uma piscina. A importância deste local é descrita de duas maneiras. Por um lado, através das aventuras e desventuras do jovem poeta entre as secções de adultos e de crianças e das estratégias usadas com o objectivo de requisitar os livros desejados, geralmente relacionados com zoologia e geografia, e de superar estas fronteiras guardadas ferozmente pelas funcionárias. Por outro lado, a associação entre biblioteca e piscina, além de distinguir esta biblioteca (por oposição à biblioteca central de Sveavägen, «onde o ambiente era mais sombrio e o ar era parado, sem vapores de cloro, sem o eco das vozes. O cheiro dos livros também era diferente e fazia dores de cabeça.», p. 48), recria de forma sensorial extremamente sugestiva a riqueza de evocações contida neste espaço:  «Logo à entrada se sentiam os vapores da piscina e o cheiro a cloro que vinha dos respiradouros, e ouvia-se o eco das vozes lá dentro. Todas as instalações de banhos têm uma acústica magnífica.» (p. 46). Baseando-se em elementos olfactivos e sonoros, a descrição é objectiva e concreta. A proximidade entre biblioteca e piscina parece, no entanto, dar vozes aos livros e intensificar o seu odor através do cloro.

O interesse do escritor por museus e por colecções relaciona-se com esta preferência pelo concreto e pela geografia. Não só a identidade dos museus e das colecções depende do ordenamento de um espaço, como tanto nos museus como nas colecções os objectos são sempre representantes de alguma coisa (de uma experiência, de uma espécie animal, botânica ou mineral, de um período artístico, de um autor, de uma civilização), contendo em si um conjunto de evocações e ecos comparáveis aos das bibliotecas e piscinas povoadas. Quando fala da sua colecção de insectos, o autor sublinha esta riqueza evocativa: «Tinha começado a fazer uma colecção. As minhas colecções cabiam num armário lá em casa. Mas dentro da minha cabeça crescia um museu imenso e entre este museu de fantasia e o museu verdadeiro […] estabeleceu-se uma relação.» (pp. 22-23). O museu verdadeiro é indissociável do museu de fantasia, tal como os objectos das colecções e dos museus são inseparáveis daquilo em que fazem pensar.

Da entrada do Museu de História Natural, Tranströmer  recorda os dois esqueletos de elefante tanto como guardiões da vida exposta nesse espaço como enquanto mensageiros da morte e dos episódios de angústia e de pânico vividos pelo poeta no Inverno em que tinha 15 anos («[t]alvez a minha experiência mais importante», p. 69). Torna-se claro que as próprias colecções de insectos do autor podem ser vistas como intimações de mortalidade: «Desse mundo, eu capturava a mais ínfima fracção de uma ínfima fracção, que depois pregava nas caixas que ainda hoje guardo. Um minimuseu escondido, de que raramente me lembro. Mas eles lá estão, os insectos. Como que à espera da sua hora.» (pp. 25-26).

Quando Tranströmer tem à volta de 15 anos, os interesses artísticos ocupam o espaço da entomologia e das colecções, de algum modo funcionando como prolongamento natural destes. Com a consciência de que tanto a vida como a morte se inscrevem de modo inescapável no concreto (dos museus, das colecções, da geografia, da vida) se articulará a actividade poética do autor nos anos que este volume já não abrange.




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