«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk

terça-feira, 20 de novembro de 2007

O rapaz deitado em cima da cova

Numa fase de muitas leituras, entre um Dickens com oitocentas e tal páginas e outros livros menos recreativos, Andreas, de Hofmannsthal (Relógio d’Água, trad. Leopoldina Almeida), a conselho da Cristina.
Há muito que não encontrava um texto tão cinematográfico (no sentido de escrita com imagens), não só pela abundância de episódios com pormenores visuais insólitos, mas também devido aos jogos de planos, proximidades e olhares perceptíveis nalgumas cenas.
Penso, por exemplo, no momento em que Andreas, atrás de uma avelaneira, observa em segredo um dos criados a enterrar um cão na floresta, pressentindo depois, enquanto se detém em cima dessa sepultura improvisada, uma espécie de «mundo subjacente ao mundo real» (p. 55), na linguagem corporal contorcida do cavalheiro todo de preto que escrevia cartas numa esplanada (p. 70), ou no percurso que antecede a visita a Nina.
Este último episódio é particularmente rico: Andreas perde-se por ruas desconhecidas, encontrando-se de súbito numa igreja; na penumbra, uma mulher com um lenço negro na cabeça, ajoelhada num genuflexório, torcendo as mãos em atitude de súplica, é súbita e inexplicavelmente substituída por outra figura vestida de modo parecido, mas permanecendo de pé e olhando-o fixamente («Era como se as lajes do chão se tivessem aberto e tivessem engolido essa mulher atormentada, deixando porém em seu lugar aquela outra estranha criatura.», p. 79), que o seguirá depois pelas ruas de Veneza.

No episódio que decorre numa herdade durante a viagem de Andreas, há momentos em que se conjugam vários espaços em montagem paralela (o da personagem que escuta atrás da porta, as pessoas dentro do quarto, o cão no pátio): «Todos os sentidos dele estavam alerta e consegui distinguir a voz da mulher do lavrador, trançando o cabelo enquanto falava, e, ao mesmo tempo, o barulho que o cão fazia lá em baixo no pátio a devorar avidamente qualquer coisa (p. 38).
Do ponto de vista visual, a cena de despedida entre Andreas e Romana (p. 58-59) está particularmente bem construída. Andreas pressente a possibilidade de encontrar Romana no seu quarto já vazio, mas quando lá volta, vê essa expectativa gorada («No fundo da escada ficou ainda longo tempo à escuta, indeciso»). Desloca-se à cavalariça «sem mesmo o querer», para aí a descobrir. Este encontro procede por planos de proximidade e distância. Primeiro, um grande plano da boca dela («De início, ele mal se deu conta de que era ela quem estava ali, de corpo inteiro, na sua frente.»). Depois, uma inversão da visão tradicional do próximo e do distante: «Ela não se aproximou nem tão-pouco se afastou dele, estava-lhe tão próxima que mais parecia estar dentro dele e, por outro lado, dir-se-ia que nem o estava a ver.». A separação fica fora de cena: «Sem saber como, deu consigo sentado no carro já a ser puxado pelos cavalos.». Um pouco mais à frente, a narrração apoia-se claramente num modo de ver:
«Sentiu que bastava um olhar, desde que lançado de bastante alto, para unir tudo o que está separado […]. Romana era sua onde quer que estivesse, ela pertencia-lhe, fazia parte dele, onde e sempre que o desejasse. Aquela montanha que se erguia na frente dele, tentando, qual seta despedida, alcançar o céu, era para ele uma irmã e mais ainda do que uma irmã.» (p. 61).

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