«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

But why should she walk shoeless, through all that water?

Vou avançando na leitura de Bleak House. Nesta minha leitura, que imagino que se vá prolongar pelo menos até ao fim do ano, sou de vez em quando surpreendida não só pela versatilidade estilística do autor, que, da opulência do campo às zonas mais miseráveis da cidade, não recua perante nenhum ambiente, mas também pela beleza de certas figuras menores, que, às vezes apenas devido a um gesto ou a uma atitude, se destacam, ganhando densidade inesperada.

As adaptações cinematográficas e televisivas de Dickens não lhe fazem justiça. Pegam naquilo que é menos interessante nos seus livros, as personagens menores mais tipificadas, e enchem o écran de actrizes e actores desfeados por caracterizações que os tornam disformes e repugnantes. A ironia, assim, não passa.
 
Uma das personagens que me chamaram a atenção dá pelo nome de Hortense. É criada de uma das personagens principais. A reacção dela perante uma humilhação que lhe foi imposta, num dado passo, pela senhora que serve, é suficiente para a individualizar.

Tinha estado a chover. A senhora vai-se embora de carruagem, deixando-a para trás:
«Her retaliation was the most singular I could have imagined. She remained perfectly still until the carriage had turned into the drive, and then, without the least discomposure of countenance, slipped off her shoes, left them on the ground, and walked deliberately in the same direction through the wettest of the wet grass.»

Pouco depois, também as outras personagens se vão embora, aproximando-se da casa onde mora a senhora. O capítulo acaba assim:
«We passed not far from the house a few minutes afterwards. Peaceful as it had looked when we first saw it, it looked even more so now, with a diamond spray glittering all about it, a light wind blowing, the birds no longer hushed but singing strongly, everything refreshed by the late rain, and the little carriage shining at the doorway like a fairy carriage made of silver. Still, very steadfastly and quietly walking towards it, a peaceful figure too in the landscape, went Mademoiselle Hortense, shoeless, through the wet grass.»

O capítulo acaba com uma figura menor, avançando descalça pela relva molhada, um episódio que poderia figurar num romance de Virginia Woolf, que nunca se interessou por figuras menores e estereotipadas, nem consta que fosse dickensiana.

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