«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Filmes em 2016


Cinematograficamente, ao que tudo indica (tenho sempre a esperança de alguma obra-prima me ter escapado e é tão bom descobrir bons filmes alguns anos depois de terem saído), 2016 não foi um ano inesquecível, a não ser por causa de perdas importantes, como Rivette e Kiarostami.



O filme que estreou em 2016 que recordo com mais perplexidade (sempre um bom sinal) é L’Avenir, de Mia Hansen-Love. Não é fácil escrever sobre os filmes desta realizadora. Uma das características de que mais gosto neles é a atenção à existência de todos os dias. Podem ocorrer pequenas ou grandes catástrofes, mas a vida continua sem espalhafato. Esta resiliência é mais difícil de filmar ou traduzir em imagens do que se espera. Um dos elementos de L’Avenir que mais deram que falar – o facto de a protagonista parecer impermeável às perdas que sofre – relaciona-se com a mesma posição estética (e ética). Estamos mais habituados a personagens femininas  e masculinas descontroladas e desequilibradas – parecem mais interessantes, com mais potencial ficcional –, mas é admirável que a realizadora enfrente corajosamente a opacidade da sua protagonista, sem nada fazer para nos entreter ou distrair desta dificuldade.

 


A protagonista de Julieta, de Pedro Almodóvar, parecendo à partida muito diferente de Nathalie (Isabelle Huppert) em L’Avenir, destaca-se igualmente pela capacidade de sobrevivência, embora reagindo às adversidades de modo diferente. Na obra de Almodóvar, este filme distingue-se pela sobriedade, sem, no entanto, perder a crueza e violência emocional que o realizador é exímio a trabalhar.

 



Mais duas personagens femininas intrigantes em filmes que nos deixam a pensar são Barbara (Nina Hoss), no filme de Christian Petzold (2012), e Margaret (Lindsay Crouse), em House of Games, de David Mamet (1987). Estes dois filmes tão diferentes, o de Petzold desarmantemente simples no artifício, o de Mamet mais lúdico e mais fascinado com labirintos mentais, partilham o facto de terem protagonistas difíceis de ler. Questionamo-nos durante muito tempo sobre as motivações destas mulheres também graças aos desempenhos excepcionais das duas actrizes.

 


Em 2016 tivemos a sorte de ver mais um filme de Apichatpong (Cemitério do Esplendor), um dos realizadores no activo mais originais e inesperados, com filmes que vejo sempre com curiosidade e um grande interesse na capacidade deste autor de explorar simultaneamente várias dimensões temporais sem se atrapalhar.

 


Intrigante e inesperado continua a ser The Shining, de Stanley Kubrick, um filme de 1980 que, no entanto, ainda surpreende, maravilha e causa alguma estranheza. É uma longa-metragem que admite diferentes descrições de acordo com a perspectiva assumida. Diverte-me mais vê-lo como abordagem das dificuldades de escrever. Isolados (escreve-se sempre sozinho), rabugentos, desgrenhados, frustrados com a lentidão da actividade e com as próprias incapacidades, desorientados no labirinto umas vezes vazio, outras demasiado ruidoso e povoado, da sua imaginação, os escritores, à semelhança de Jack Torrance, recebem visitas indesejadas de personagens ou pessoas do passado e do futuro – o presente, no entanto, permanece inarticulável.

 

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