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segunda-feira, 11 de maio de 2015

Especulação




O romance Dept. of Speculation, de Jenny Offill (n. 1968), foi uma referência constante nas listas dos melhores livros de 2014. É um romance narrado por uma personagem feminina que tenta conciliar os papéis de escritora, mulher (esposa) e mãe, no qual se conta o desenvolvimento de uma relação, desde o início, com passagem pela decisão de casar e ter um filho, até uma crise do casamento desencadeada por uma infidelidade do marido. Em Portugal este livro será publicado em 2015 pela Relógio d’Água.

Descrito desta forma, Dept. of Speculation parece um romance semelhante a muitos outros. Contudo, apesar de pecar por não conseguir libertar-se completamente de alguns lugares-comuns mais gastos da ficção tradicional (além do tópico do adultério, a transição da vida urbana para a vida suburbana, mas também a preocupação de contar uma história «de interesse humano» em que é possível identificar princípio, meio e fim), Dept. of Speculation é um romance corajoso, original e único graças à organização formal e à narração a partir de parágrafos aforísticos e epigramáticos que surpreendem pela intensidade lírica e conceptual.

A noção de «especulação» está presente logo a partir do título: esta especulação é existencial, literária e filosófica. O romance destaca-se pela capacidade singular de narrar estes conflitos e as suas pequenas histórias a partir de parágrafos curtos mas dotados de uma densidade que os aproxima do ensaio breve e da poesia. Alguns destes parágrafos comentam referências culturais, factos, episódios ou citações literárias e filosóficas com uma ironia que se reflecte sobre o enredo principal: «My plan was to never get married. I was going to be an art monster instead. Women almost never become art monsters because art monsters only concern themselves with art, never mundane things. Nabokov didn’t even fold his umbrella. Vera licked his stamps for him.» (p. 8).

 
Uma distinção interessante de Dept. of Speculation em relação a livros que tratam tópicos parecidos é a fase da vida que a narradora atravessa, entre a juventude e a velhice. À tradição fascinada pelas ilusões e pelas instabilidades das mulheres jovens, Offill opõe a rotina e os compromissos da idade adulta, com os  ressentimentos e frustrações que lhe estão associados. Apesar disso, não perde de vista nem a urgência de viver e de escrever da protagonista, nem o modo como esta urgência se vai tornando cada vez mais preciosa ao longo da vida.

 
Talvez a maior proeza do livro de Jenny Offill seja o modo como a narradora articula as funções de escritora, mulher (adulta e esposa) e mãe na enunciação: os papéis de mulher e mãe são desempenhados enquanto escritora; não há uma fronteira decisiva entre a vida quotidiana e a vida literária. Não se escreve de modo diferente por se ser mulher e mãe, mas vive-se de modo diferente por se ser escritora, tal é o esforço constante de fazer sentido da existência quotidiana que esta condição implica. O impulso de fazer sentido exerce-se tanto sobre os textos lidos e escritos pela narradora como sobre os episódios e pormenores mais insignificantes da vida quotidiana. A dificuldade de escrever é descrita como equivalente da dificuldade de viver e sobreviver. Neste sentido, “Mother Courage”, o título do texto que James Wood publicou na revista New Yorker sobre este livro de Jenny Offill, é um pouco redutor. Se Dept. of Speculation tivesse um narrador e autor do sexo masculino, dificilmente alguém se lembraria de escolher “Father Courage” como título de uma recensão do livro. (Não estou a dizer que o trocadilho brechtiano foi escolhido com intenções discriminatórias, mas sim que, por vários motivos, o problema dos sacrifícios inerentes à paternidade raramente é sublinhado como tema principal de um livro com um autor do sexo masculino.)

 
No seu próprio site (http://jennyoffilll.com/), Jenny Offill publicou uma lista dos livros que considera influências próximas e distantes deste romance. Entre estes inclui autores como o Fernando Pessoa do Livro do Desassossego, Renata Adler, Maggie Nelson, Robert Walser, John Berryman, Lydia Davis, Kafka, Mary Ruefle e Anne Carson. É fácil perceber que se trata de uma família de autores que cultivaram ou cultivam formas curtas e intensas. Jenny Offill aproxima-se destes escritores pela capacidade de condensar ideias de modo simultaneamente lírico e racional. Distingue-se, no entanto, pelo imposição de uma corrente narrativa capaz de inspirar o leitor a relacionar estes parágrafos  num enredo coerente.

 
Se quisermos convocar uma família de escritores contemporâneos totalmente diferentes, podemos pensar em nomes como Elena Ferrante ou Karl Ove Knausgaard, autores torrenciais que não têm como preocupação principal desenvolver uma reflexão distanciada sobre os acontecimentos que estão a narrar, procurando antes expor e  explorar pormenores concretos e emocionais mais imediatos. Pelo contrário, Jenny Offill, à semelhança de Maggie Nelson e de Sarah Manguso, trabalha descrições depuradas e intensas de estados de espírito, usando a reflexão quer sobre incidentes existenciais, quer sobre citações ou anedotas filosóficas ou literárias, como lente através da qual a narração avança.

 
As maiores diferenças de Sarah Manguso e de Maggie Nelson relativamente a Jenny Offill residem, no caso das duas primeiras, tanto numa secundarização das preocupações narrativas do registo ficcional como na escolha de temas menos convencionais: Sarah Manguso publicou livros sobre a sua experiência de uma doença crónica auto-imune (The Two Kinds of Decay), sobre a sua reacção ao suicídio de um amigo (The Guardians) e sobre a experiência de escrever um diário (Ongoingness: The End of a Diary); entre outros, Maggie Nelson escreveu um livro que se organiza a partir de parágrafos sobre a cor azul (Bluets). Manguso e Nelson são, portanto, escritoras mais difíceis de classificar e até de divulgar.

Aliás, Sarah Manguso e Maggie Nelson não estão traduzidas em Portugal e não é fácil nomear escritores portugueses contemporâneos pertencentes à mesma família. Alguma prosa poética portuguesa actual tende a acentuar vertentes mais líricas, sem investimento verdadeiramente reflexivo nem grandes preocupações narrativas. Dir-se-ia que certos textos de Adília Lopes trabalham o mesmo registo dos de Jenny Offill, mas de modo mais desleixado ou, se quisermos, mais lúdico e deliberadamente ingénuo. Por este motivo, Adília Lopes é uma escritora muito diferente de Jenny Offill.
 
 
 

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