Em 2015,
ano em que terminei e defendi a tese de doutoramento, li dois livros publicados por editoras portuguesas sobre
temas relacionados com os tópicos que tratei. Vão a seguir os textos que
escrevi sobre eles.
«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk
segunda-feira, 7 de dezembro de 2015
Curiosidade
Alberto
Manguel. 2015. Uma História da Curiosidade. Trad. Rita Simões. Lisboa:
Tinta-da-China.
O novo
livro de Alberto Manguel, ensaísta e romancista canadiano de origem argentina,
intitula-se Uma História da Curiosidade
(Curiosity é o título original). O
primeiro conceito de curiosidade que o autor explora relaciona-se com a noção
de interrogação. Ao longo do livro, adicionalmente, somos presenteados, aqui e
ali, com uma segunda acepção de curiosidade, a de informação rara ou
interessante.
De acordo
com Manguel, «porquê» é uma das primeiras palavras que aprendemos. Citando
Jung, o autor descreve as pessoas como «uma pergunta dirigida ao mundo». Todos
os capítulos de Uma História da
Curiosidade ostentam uma pergunta no título: por exemplo, «Quem sou eu?»,
«O que fazemos aqui?», «Como questionamos?», «O que podemos possuir?», «Onde é
o nosso lugar?», ou «O que nos distingue?» Para abordar estas perguntas,
Manguel muitas vezes refere e comenta elementos pouco conhecidos, que vão desde
uma das ocorrências mais antigas de um ponto de interrogação num documento
agora na Biblioteca Nacional de Paris, a objectos raros de museus, citações de
outros livros, ou peripécias mais intrigantes da vida de personalidades mais ou
menos obscuras, como Paul Otlet, Isabella d’Este, Cassiano dal Pozzo ou Robert
Oppenheimer. Contudo, a referência principal de Manguel para abordar as
perguntas a que mais lhe interessa responder são os livros.
Para
Manguel, expressa através de palavras, oralmente ou na escrita, a curiosidade
identifica e consolida o interesse das pessoas pelo que as rodeia, ao mesmo
tempo que as liga às outras pessoas. De acordo com o autor, «[i]nventamos
histórias para dar forma às nossas perguntas; lemos ou ouvimos histórias para perceber
o que queremos saber [...] somos levados pelo mesmo impulso questionador, pelas
perguntas de quem fez o quê, e porquê, e como, para que possamos, por nossa
vez, perguntar a nós próprios o que fazemos e como e porquê, e o que acontece
quando se faz ou não se faz alguma coisa.»
A
concepção de humanidade de Manguel é indissociável da leitura, da literatura e
das palavras. Segundo Manguel, uma das experiências mais comuns na vida dos
leitores é «a descoberta, mais tarde ou mais cedo, de um livro que permite,
como nenhum outro, explorar o nosso eu e o mundo de uma forma que nos parece
inesgotável» (p. 13). O autor explica que ele próprio já recorreu a livros
diferentes (os Ensaios de Montaigne, Alice no País das Maravilhas, as ficções
de Borges, o Dom Quixote, As Mil e Uma
Noites ou A Montanha Mágica) para
esse fim, mas nesta fase da vida o texto que lhe parece mais rico e expressivo
é A Divina Comédia, de Dante, obra
que constitui o eixo principal de Uma
História da Curiosidade.
Manguel
observa que Dante está sempre em diálogo e que a Divina Comédia se organiza em torno das perguntas de Dante. Além
disso, recorda que, na Divina Comédia,
a questão da relação da humanidade com a linguagem – com todas as suas funções,
mas também limitações – é crucial. Em Uma
História da Curiosidade, a linguagem é descrita como o instrumento
imprescindível de relacionamento das pessoas uma com as outras e com tudo o que
as rodeia. Ao mesmo tempo, é descrita como uma espécie de escada que se põe de
parte depois de se chegar à quilo que ela própria é incapaz de abranger: «A
linguagem, como sabemos, é a nossa ferramenta de comunicação mais eficaz, mas,
ao mesmo tempo, um impedimento à nossa compreensão total. Mesmo assim, como
Dante aprende, é necessário passar pela linguagem para chegar àquilo que não
pode ser transposto em palavras.» (pp. 82-83). A metáfora que uso aqui é
obviamente wittgensteiniana, apesar de (neste livro, pelo menos) Wittgenstein
não ser identificado como um dos heróis de manguel.
Ao mesmo
tempo que permite contemplar esta tensão entre as palavras e certas
experiências, a Divina Comédia chama
a atenção para a visão panorâmica inerente ao uso da linguagem: «a nossa
relação com a linguagem é sempre uma relação com o passado, e também com o
futuro. Quando nos servimos das palavras, servimo-nos da experiência acumulada
antes de nós nas palavras; servimo-nos da multiplicidade de significados
aramazenados nas sílabas que empregamos para tornar a leitura do mundo
compreensível para nós e para os outros. Os usos que precederam o nosso
alimentam e alteram, sustentam e debilitam o nosso uso presente: sempre que
falamos, falamos com muitas vozes, e mesmo a primeira pessoa do singular é
plural.» (p. 325).
De acordo
com esta perspectiva, as palavras são um recurso para, tal como Dante na Divina Comédia, falarmos como e com não só os mortos
(estatuto de que todos partilharemos), mas também como e com os vindouros.
Manguel sublinha que, tal como na Divina
Comédia, através do diálogo, Dante é simultaneamente «contaminado e
redimido por aquilo que os outros fazem e por aquilo que os outros são» (p.
186), também nós nunca estamos sozinhos quando usamos as palavras; estamos
sempre a pensar com os que as usaram antes e usarão depois de nós. Pelo mesmo
motivo, a leitura é descrita como arte infinita: «Mesmo se todas as sílabas de
um texto fossem analisadas e
interpretadas até à sua extensão máxima, o leitor obstinado continuaria a ter
as leituras dos que os precederam e que, como as pegadas dos animais no bosque,
formam um texto cuja narrativa e significado também estão abertos a análise
minuciosa.» (p. 106)
No
contexto actual da crise dos refugiados, os passos de Uma História da Curiosidade sobre o exílio adquirem um significado
especial. Na Divina Comédia, a figura do
exilado está presente a partir tanto do autor (por motivos políticos, Dante foi
condenado ao exílio de Florença) como do narrador (Dante está vivo e percorre o
mundo dos mortos). Em passos comoventes sobre a noção de exílio (a meta
impossível do exilado é precisamente o lugar que lhe está interdito, p. 228),
Manguel recorda também que observou que os habitantes do Inferno têm «uma
estranha parecença com imigrantes exilados [...]. Os fragmentos das suas
histórias, as suas efusões sentimentais, os acessos de cólera, as notícias
políticas de ambos os lados, a sua sede de informação, os seus últimos desejos,
tudo parece vir da mesma argila e do mesmo povo.» (p. 227). Outro momento alto
do livro são os passos sobre «os que vivem por suas mãos» no capítulo «O que
podemos possuir?» Manguel reflecte sobre a representação artística de
trabalhadores ao longo dos tempos, referindo desde a figura de Marta na Bíblia
(a irmã de Lázaro que se preocupa com o jantar de Jesus, enquanto Maria é
elogiada por ficar aos seus pés), passando por representações pictóricas de
ferreiros ou pescadores na Idade Média, os ofícios dos livros de Horas, certas
figuras minúsculas de Brueghel, os modelos populares controversos a que
Caravaggio recorria para representar figuras religiosas, até aos lavradores,
costureiras e lavadeiras dos impressionistas ou trabalhadores das fotografias
de Sebastião Salgado, que recordam a descrição dantesca das almas condenadas
nas margens do Aqueronte.
Em suma, Uma História da Curiosidade é ao mesmo
tempo um livro pessoal, na medida em que lida com as interrogações mais
urgentes do seu autor, e um livro enciclopédico e universal, que nos informa,
diverte e comove. Não deve ser lido em busca de revelações e análises profundas
das questões abordadas, mas antes como uma espécie de catálogo ou de compilação
de informações e reflexões sobre livros que, porque pareceram interessantes e
significativas para o autor, ele quis partilhar com os outros. Neste livro, não
há argumentação complexa nem reflexão aprofundada, mas sim um conjunto de
observações anotadas por prazer – prazer de ler, prazer de viver e prazer de
comunicar. Interessa ao autor não
propriamente retirar conclusões, mas sim continuar a interrogar, por muito
fácil, vazio ou gratuito que isso possa parecer. Nisto reside ao mesmo tempo a
maior virtude e a maior fraqueza do livro.
Hotel
Paulo
Varela Gomes. 2014. Hotel. Lisboa:
Tinta-da-China.
Nos
últimos anos, Paulo Varela Gomes (n. 1952, especialista em História da
Arquitectura e da Arte) publicou os romances O Verão de 2012 (2014), Hotel
(2014), Era Uma Vez em Goa (2015),
assim como o livro de crónicas Ouro e
Cinza (2014). Aproveitamos a atribuição do prémio PEN Narrativa 2015 a Hotel para recuperar este excelente
romance e reflectir um pouco sobre o autor.
No cerne
de Hotel está a ideia de que as
pessoas, o espaço e a sociedade funcionam como uma espécie de hipertexto ou
ponto de entrecruzamento de várias referências históricas e culturais. O
protagonista (Joaquim Heliodoro), o espaço principal do romance e as suas
histórias representam este cruzamento de referências, num livro inteligente e
divertido que concretiza a ideia de que as vidas e as histórias das personagens
são indissociáveis de tudo o que as rodeia do ponto de vista material (espaço,
objectos, outras pessoas) e cultural (livros, filmes, internet). Neste romance
nenhum elemento pode ser compreendido sem apelo a uma vasta rede de
informações, ainda que estas informações não se revelem suficientes para
assegurar tal compreensão.
A
descrição de hipertexto – «aquele dispositivo que a internet reinventou e
aperfeiçoou através do qual quase todos os conceitos e nomes presentes num
texto remetem para outros nomes e conceitos, e assim sucessivamente, numa teia
infinita ao longo da qual o sentido se perde definitivamente» (p. 169) – é
explicitamente relacionada com os gabinetes de curiosidades do Renascimento e
com as notas de rodapé dos ensaios académicos. De acordo com o narrador de Hotel, o circuito de remissões de uma
coisa para outra partilhado pelo hipertexto e pelos gabinetes de curiosidades
traduz um mecanismo universal da percepção humana.
O espaço
principal do romance, o hotel que o protagonista, depois de «ganhar o
euromilhões», remodelou de acordo com os seus caprichos pessoais e com as
teorias que desenvolveu a partir de inúmeras estadias em hotéis de todo o
mundo, representa o mesmo entrecruzamento de caminhos: «Lembrou-se de que
praticamente nenhum dos muitos aposentos e espaços do hotel tinha apenas uma
porta de acesso ou saída, todos pareciam, quando neles se entrava, o início de
um percurso» (p. 166).
Tal como
o espaço que habita e que recriou, visitado por várias personagens peculiares,
o próprio protagonista é descrito por outras personagens através de um conjunto
de referências culturais entrecruzadas: «uma pessoa do final do século XVIII,
vestida à maneira do século XIX e teleportada para o século XX […] Margareta
retorquiu que do século XVIII Joaquim Heliodoro só teria o lado mais ferozmente
realista, a libertinagem, mas tudo o resto lhe parecia resultar da
auto-repressão empertigada da sociedade burguesa triunfante» (p. 165).
À
semelhança da arquitectura do hotel em que se desenrola, não só a arquitectura
do romance é deliberadamente visível e exposta, como quer a própria intriga,
quer a densidade do protagonista,
dependem da revelação gradual desta visibilidade. A arquitectura do romance é
exibida através da integração de citações, digressões de tom ensaístico,
transcrições de livros pornográficos, referências a lendas ou outras
manifestações de cultura popular e até, no capítulo intitulado «Desencontros e
conjugações» (pp. 219-229), da divisão da narração em três colunas por página.
A ideia
da relação estreita entre a mente humana e o espaço articula-se com o voyeurismo,
o outro tema importante do romance. O narrador explica: «a escopofilia,
diferentemente de outras orientações sexuais, resulta directamente das
características do espaço que separa o olhador do objecto olhado, do modo como
a luz ilumina certos lugares e se afasta de outros, das dimensões e disposições
dos vãos e aberturas, dos caminhos que se percorrem (as passagens) até ao lugar
do olhar, os corredores desertos, as salas silenciosas, quer dizer, a
escopofilia é uma pulsão arquitectónica e arquitectada, a ponto de o lugar
(como temos vindo a verificar no hotel de Joaquim Heliodoro) adquirir uma
intensidade erótica que subsiste muito para além do olhar, a ponto de o lugar
poder substituir o próprio objecto do olhar e ser a cena que, mesmo vazia, provoca
o desejo» (p. 112).
Em Hotel, o autor e o protagonista podem
ser descritos como arquitectos de desejos que envolvem nas suas construções
tanto os leitores como as personagens. As observações sobre o voyeurismo são observações sobre a leitura. O voyeurismo das personagens vai-se confundindo
com o voyeurismo dos leitores. A arquitectura do hotel torna-se indistinta da
arquitectura do livro; ambos dependem da interacção – com os hóspedes e os
leitores: «acabada a obra,
Joaquim Heliodoro compreendia que a vida do hotel enquanto obra de arte
dependia agora dos hóspedes, a poesia com que esta obra o embalara ao pensá-la
e ao construí-la provinha daquilo que os hóspedes lhe contassem, dos sítios por
onde passassem ou se detivessem a ler ou a devanear, das emoções que pudessem
experimentar, da alegria com que regressassem e da melancolia com que se
despedissem» (p. 153).
Talvez o
elemento menos conseguido de Hotel se
deva à circunstância de todas as personagens funcionarem como notas do rodapé
do protagonista, ele próprio um assumido apreciador deste tipo de comentário.
Sem densidade, aparecem como simples presenças, desligadas do seu presente e do
seu futuro, como se reconhece perto do fim do romance a propósito de Manuela, o
par ficcional do protagonista. Contudo, mesmo esta falta de densidade das
personagens secundárias concretiza a ideia principal do romance: todos somos
lugares de passagem (tópico que, aliás, será desenvolvido no próximo romance do
autor, intitulado precisamente Passos
Perdidos).
Pelo
sentido de humor, pelo cosmopolitismo invulgar das suas personagens, pela
diversidade das referências culturais que consegue articular sem
pretensiosismos nem exibição gratuita de erudição, pela capacidade de explorar
uma zona intermédia entre o romance e o ensaio em que as referências culturais
estão ao serviço da narrativa em vez de a desequilibrar, pelo facto de nos
recordar que a vida e as actividades de ler, escrever ver filmes, viajar e
pensar podem ser muito mais interessantes quando são indissociáveis, Paulo
Varela Gomes ocupa um lugar único na literatura portuguesa contemporânea.
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