Van Gogh
«The pensive man... He sees the eagle float
For which the intricate Alps are a single nest.»
«Connoisseur of Chaos», Wallace Stevens
Nem todas as pessoas que gostam de livros
gostam de bibliotecas. No meu caso, não se trata de aversão aos universos
sossegados da cultura livresca. Pelo contrário, parece-me que as bibliotecas
contêm demasiadas distracções. Está-se fechado, refém das distracções.
Requisitou-se livros necessários que demoram a chegar, não se pode ir logo
embora.
Só nas bibliotecas anseio intensamente pelo
mundo exterior. Numa biblioteca transformo-me temporariamente num ser que toda
a vida viveu na montanha, em comunhão com a natureza, passeando em prados
cheios de miosótis. Quando por acaso me encontro numa montanha, no entanto, rapidamente
se torna claro que preferia não estar ali.
Poucas vezes vou a bibliotecas, mas quando vou
sucedem coisas que não deviam acontecer em bibliotecas: livros desaparecidos em
parte incerta ou requisitados por funcionários sem prazo de entrega;
encerramento da secção onde está o livro pretendido devido a ausência do
funcionário, por lesão profissional; janelas abertas para a primavera; turistas
bem vestidos na esplanada em frente, bebendo descontraidamente sumo de laranja.
Cercada de livros sombrios como sentinelas
adormecidas, ainda que de serviço, nunca consigo encontrar o que procuro. Lamento
o tempo de deslocação para a biblioteca. Parece-me sempre preferível mandar vir
o livro pela internet, desperdiçando balúrdios de dinheiro. Enquanto se espera pelos
livros em casa, vigiando o mundo exterior da janela do escritório, a chuva cai
lá fora, os outros, recorrendo a guarda-chuvas, cuidam das próprias vidas e,
enfim, os livros avançam pelo espaço em direcção a nós, vencendo obstáculos.
Na biblioteca, ouço o rumor das palavras nos
livros e às vezes os autores têm defeitos de fala ou pronúncias estranhas e não
se calam.
Intrigam-me os percursos das pessoas pelas
bibliotecas. De onde vêm? Para onde vão? Que assuntos estudam? Que música
escutam? A que vídeo assistem ruidosamente no computador, incomodando os
outros? De que lhes serve, enfim, estarem na biblioteca?
Contam-se histórias sobre ladrões
especializados em bibliotecas. Ficam à espera de que as pessoas vão à casa de
banho, aproveitando esses momentos para se apoderarem de tudo o que estas
deixaram para trás, umas vezes mochilas sem nada de valioso, outras, a vida
inteira da vítima: casacos com carteiras, telemóvel e chaves de casa e do
carro, mais um computador ou outro apetrecho. Sempre que estou na biblioteca
procuro identificar esses ladrões usurpadores de identidades.
Certa vez, na biblioteca da Faculdade de Letras
de Lisboa, enquanto lia coisas para um ensaio que não queria escrever, escolhi
um canto isolado, procurando evitar as distracções.
Foi em Dezembro; estava muito frio na
biblioteca. Perto de mim, uma rapariga fortemente agasalhada dormia sobre a
mesa, rodeada de comida pouco saudável. Uma pessoa a dormir ao nosso lado não representa
a melhor motivação para quem deseja trabalhar. Sobre o telhado da biblioteca
ouviam-se passos e instruções. Trabalhadores avançavam por ali com passos
pesados.
De repente, enquanto avaliava a
facilidade com que se descolam as páginas de teses mal encadernadas, caíram
sobre a minha mesa algumas partículas misteriosas. Gradualmente percebi que
eram palhinhas, fios, penas, dejectos secos, pedacinhos de páginas reciclados de modo estranho.
Depois de alguma reflexão, concluí que se
tratava de fragmentos de ninhos de
pássaros. À medida que os homens trabalhavam no telhado, descobriam ou abriam
buracos pelos quais o frio e os ninhos penetravam na biblioteca. Era como ter outro
universo sobre a minha cabeça.
É
sempre assim quando estou em bibliotecas. Tudo me interessa e inspira, menos o
assunto que inicialmente vou lá investigar.
Essa manhã teve alguns momentos de sol, mas,
coisa pouco frequente em Lisboa, o sol acabou por ser integralmente engolido
pelo nevoeiro. Enervada com
os fragmentos dos pássaros, dei por mim a imaginar a atmosfera húmida do horto do Campo
Grande, o cheiro a cedro.
Depois de menos de uma hora e meia na biblioteca, decidi ir a
pé para casa, passando pelo edifício da Torre do Tombo, em cuja fachada as
gárgulas vigiam a cidade, sem nunca adormecer, e alguns pássaros mais raros
procuram moradia ou protecção.
Que pássaros moravam ou moram nos telhados da
biblioteca da Faculdade de Letras, não posso dizer. Sei, contudo,
que alguns peneireiros nidificam nos respiradouros da Torre do Tombo. No chão
acumulam-se pequenos objectos alongados, com cerca de quatro centímetros de
comprimento – as chamadas bolas de regurgitação ou plumadas – compostas de
restos de refeição: penugem, penas, restos de insectos e ossos não digeridos que
as aves regurgitam.
Para grande consternação do professor, o ensaio
que tive de entregar no início de Janeiro havia de começar com uma frase digna
de piedade, piorando a partir daí. A primeira frase incomodou o professor, mas
não tanto como o facto de o ensaio não ter notas de rodapé suficientes.
Certa vez tive de ir à biblioteca da Cinemateca
no começo da Primavera. Saindo na estação do Marquês de Pombal, atravessei
parte da Avenida da Liberdade através de nuvens de sementes libertadas pelos
plátanos. Quando subi a Rua Barata Salgueiro todas as árvores estavam em flor.
Flores roxas e rosa rodopiavam no ar.
Na recepção da biblioteca, depois de requisitar
determinado título, respondi mal à pergunta clássica de vários tipos de funcionários:
«Quer ou queria?» A sala de consulta estava com a janela aberta. Quando lá
cheguei, espirrei tanto que a funcionária teve de verificar se eu ainda conseguia
respirar.