«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk

sexta-feira, 19 de outubro de 2007

Teses

Depois de acabar o BA (aquilo a que agora chamamos licenciatura), Steven Millhauser inscreveu-se para o doutoramento na Universidade de Brown. Chegou a passar duas temporadas na Universidade sem conseguir acabar a tese.
Este tempo, no entanto, não foi totalmente desperdiçado na medida em que lhe permitiu escrever parte dos romances Edwin Mullhouse: The Life and Death of an American Writer 1943-1954, by Jeffrey Cartwright e From the Realm of Morpheus.
Entre estas duas temporadas na Universidade de Brown, não sabendo o que fazer da vida e sem grande vontade de arranjar emprego, teve de viver em casa dos pais.

The third realm

A primeira vez que ouvi falar de Steven Millhauser foi a propósito do filme The Illusionist, de Neil Burger, que se baseia no conto «Eisenheim the Illusionist», incluído em The Barnum Museum, volume que reúne alguns contos excelentes e outros que não acrescentam nada ao mundo.

Entre os contos excelentes está «The Invention of Robert Herendeen», que supostamente se inspira na experiência de vida do próprio Millhauser entre tentativas de doutoramento.
O protagonista já escreveu uma tese (intitulada «The Role of Metaphor in the Philosophy of Locke») e os pais concordam que ele fique a viver um ano no sótão da casa para poder decidir se vai seguir Direito ou Gestão. Este ano vai-se prolongando para além dos doze meses. Em vez de se ocupar com questões práticas, Robert Herendeen passa o tempo a desenvolver vários projectos literários ambiciosos:
«I began to invent a series of artists’ lives that I planned to assemble in a book of fictional biographies, but one night I noticed that all of them were failed artists and I abruptly abandoned the plan.»
«I began reading long books, which fired my ambition without leading to anything in particular: The Anatomy of Melancholy, The Decline and Fall of the Roman Empire, the complete letters of Byron in twelve volumes.»
«I began borrowing books on architecture from the library and invented in vivid detail gorgeous villas, gardens, palaces, country estates, amusement parks.»
«On December 31 I wrote a thirty-four page suicide note that I destroyed on January 1.»

Sentindo-se um artista falhado, reflecte sobre o tema, distinguindo dois tipos de esterilidade artística.
O primeiro caso aplica-se a artistas verdadeiramente impotentes:
«In one type, the imagination remains a horrible blank, its mechanism simply refuses to create images, or else produces hopelessly banal or dead ones, greenish little corpses with waxen features. Would-be artists suffering from this form of sterility can do nothing but admit defeat, turning their attention to less exacting pursuits or perhaps shooting themselves between the eyes, as the case may be.».
O segundo, no entanto, diz respeito a artistas dotados de potencial para superar a condição do fracasso mas que ainda não encontraram a forma adequada para concretizar o seu potencial criativo:
«In the second type, the imagination remains strong, perhaps too strong, and the sufferer’s torment consists in his inability to embody his meticulous imaginings in a medium. This type, though superficially resembling the first, since both issue in nothingness, is nevertheless far more hopeful, for its cure depends on the discovery and mastery of a medium.».

É esta reflexão que o faz pensar encontrar uma solução viável para a expressão do seu talento:
«I decided to invent a human being by means of the full and rigorous application of my powers of imagination. Instead of resorting to words, which merely obscured and distorted the crystalline clarity of my inner vision, I would employ the stuff of imagination itself. That is to say, I would mentally mold a being whose existence would be sustained by the detail and energy of my relentless dreaming. My ambition was to create not an actual human being or a mere work of art but rather a being who existed in a realm parallel to the other two – a third realm, obedient to the laws of physical bodies but utterly discarnate
Isto é só o início da história.

But really, should I continue?

Se coubesse, o parágrafo deste conto em que o protagonista se apresenta figuraria neste blogue como uma espécie de epígrafe ou epitáfio anunciado:

«My name is Robert Herendeen. But really, should I continue? And here let me say that I begin this report against the grain of my own better nature, for I’ve never cared for the confessional tone so dear to our contemporary romantics. If in the course of this rigorous record I happen to bring forth my own feelings, it is I hope never for their own sake but solely for the sake of those other phenomena which I propose to examine in the clear light of – the clear light of! – and which, even now, when I look back on them – but this sentence is already quite long enough.».

Crossing of Boundaries

Estava com uma grande gripe quando li «Eisenheim the Illusionist». No fim do conto, pousei o livro e adormeci. Tive sonhos estranhíssimos que misturavam imagens do filme com coisas que tinha visualizado a partir do texto: levitações, aparições, desaparecimentos, sementes que rapidamente se transformam em árvores adultas, medalhões com segredos, espelhos, duas borboletas azuis transportando um lenço branco, teatros devolutos. Tudo isso me leva a suspeitar da possibilidade de o conto partilhar poderes mágicos com o seu protagonista.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

O plantador de macieiras que era amigo de Sebald

Por vários bons e maus motivos, depois de Ondas de Paixão, prometi a mim mesma não voltar a ver qualquer filme de Lars Von Trier.
Em Agosto, quebrei esta promessa devido a uma imagem de Dogville em que Nicole Kidman (Grace) aparece deitada entre maçãs.
Quando vi o filme, depois de algumas cenas num pomar de macieiras que alguém dizia a Grace que era preciso amar, percebi que esta imagem deixava ver aquilo que se passava por baixo da serapilheira opaca cobrindo a parte de trás de uma carrinha de transporte de mercadorias, à semelhança de uma tela de cinema estranhamente invertida.
Não posso dizer que as ressonâncias bíblicas das maçãs me interessem. Prefiro que os frutos desta imagem me recordem outros que Tacita Dean foi descobrir na casa do poeta Michael Hamburger, pouco antes de ele morrer, sob pretexto de rodar um filme inspirado no livro Os Anéis de Saturno, de Sebald, para uma exposição organizada em torno deste livro cujo autor dedica um capítulo à região de Suffolk que termina com uma visita a casa de Michael Hamburger, pessoa em relação à qual sente estranhas afinidades.
No filme de Tacita Dean, Hamburger fala só das suas macieiras «obsoletas e obsolescentes» cujos frutos ninguém quer comer, da origem destas árvores, dos métodos a que recorreu para as instalar no pomar, geralmente usando pevides oferecidas ou encontradas e não o tradicional enxerto, com destaque para uma árvore com origem num fruto do jardim de Ted Hughes, capaz de produzir as mais escuras maçãs vistas por ambos os poetas.
A desordem da casa, o jardim ameaçando invadir o edifício, o ruído do vento, o sol através das nuvens. Ceci n'est pas une pomme. Falar de maçãs para falar de si.
Para quando, na Cinemateca, algumas sessões dedicadas a Tacita Dean?
«Também no alpendre que dava para o jardim me parecia ter sido eu, ou alguém como eu, que há imenso tempo tratava de tudo. Os cestos de vime com a lenha miúda dos ramos mais pequenos para atiçar o fogo, as pedras polidas brancas e cinzentas claras, as conchas e outros achados da praia num conjunto silencioso sobre a cómoda diante da parede azul clara, os sacos almofadados e caixas de cartão empilhados a um canto, junto à porta da despensa para serem reutilizados, tudo isso me sugeria uma natureza morta feita por esta minha mão tão propensa a guardar coisas sem valor. Dando uma espreitadela à despensa, que tinha para mim uma atracção especial e em cujas prateleiras em grande parte vazias penavam sobretudo frascos de conserva e umas dúzias de maçãs vermelhas e douradas, muito pequeninas, reluziam como as da parábola bíblica no parapeito da janela que um teixo lá fora escurecia, tive a ideia totalmente irracional de que estas coisas, a lenha miúda, as caixas de cartão, as frutas de conserva, as conchas e o barulho no seu interior me tivessem sobrevivido e Michael me mostrasse uma casa onde eu já tinha morado há muito tempo

De Os Anéis de Saturno, trad. Telma Costa, Teorema, pp. 178-180

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Não parecer

O Sacrifício de Ifigénia
(Fresco romano baseado no quadro perdido de Thimanthes)

A dor tem imagens?
Há figurações da dor.
No séc. IV a. C., Thimanthes foi tão expressivo quando representou o desgosto de várias personagens em face do sacrifício de Ifigénia que para representar a dor maior de Agamémnon, o pai dela, se viu obrigado a procurar uma solução menos convencional.
Agamémnon ficou ainda dentro da imagem, mas, de cara coberta por um manto, encontrando-se simultaneamente fora dela, como se a dor, para se poder instalar, abrisse um espaço dentro do espaço.
Aqui, é precisamente por não ser mostrada que a dor se torna perceptível por nós.


Não sei se foi neste quadro que tiveram origem certas figuras que vemos a guardar alguns túmulos. Uma daquelas figuras que, no domingo, encontrei no Mosteiro de São Vicente de Fora.
Quem entra no Panteão da Casa de Bragança, depara de súbito com um vulto branco e esguio, de costas, envergando um manto. Pára.

Quem se aproximar, circundando o túmulo, subindo alguns degraus para melhor espiar a figura, constatatará que tem o rosto escondido nas mãos.
A única parte de si que deixa ver são as mãos.

E eu, que queria que este post incidisse sobre questões da representação, vejo-o transformar-se num post sobre chorar em público.

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Epígrafe, tradução

Tudo é intencionado. Tudo tem significado.

Zoologia

Há animais domésticos que foram selvagens e animais selvagens que foram domésticos. Há animais domésticos que nunca, por motivo algum, nem por instinto, sairiam de casa, e animais domésticos que, no íntimo, continuam selvagens, sempre à espera de uma oportunidade para fugir. Nem tudo, no entanto, se resume a estes jogos com antinomias banais.

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