«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk

domingo, 13 de janeiro de 2008

Dreyer e o humor

De facto, assistir a filmes mudos sem acompanhamento musical é sempre uma aventura plena de emoções fortes para a qual o cinéfilo deve preparar-se mentalmente com antecedência, sobretudo se o filme passar na sala pequena da Cinemateca.
Não estou a falar dos ruídos inevitáveis. Já se sabe: há sempre alguém que tosse, ou é viciado em rebuçados com pratinhas, ou mexe em sacos, ou adormece e ressona. Estas coisas já deixaram de me irritar.
Por mais que tente, no entanto, e, a sério, já tentei muito, não consigo encarar com naturalidade que se passe um filme inteiro a fazer comentários (argutos ou estultos, não interessa) para o parceiro do lado, mesmo que com o objectivo meritório de o impressionar.
Sessões de fim-de-semana, ou próximas do fim-de-semana, são sessões de risco. Na sexta-feira, antes do filme La Passion de Jeanne D’Arc, de Dreyer, quando o casal discutindo grandes questões sobre o relacionamento homem-mulher se sentou ao meu lado, bem suspeitei que se trataria de um par avaliando possibilidade de futura relação. Apesar disso, não troquei de lugar.
E bem me arrependi, depois, quando começou o filme e com ele os comentários jocosos do elemento masculino.
Em alturas como esta, sinto-me sempre dilacerada por dúvidas inquietantes. Que fazer: chamar a atenção das pessoas em causa de modo a prevenir futuras intervenções, ou deixar passar, na esperança de que não se repita? Regra geral, o meu perigoso optimismo deixa passar.
Nesta sexta-feira em particular, parece-me que estava um pouco abatida. Até fiz um esforço sincero por detectar o elemento humorístico do julgamento sempre que o casal ao meu lado achava engraçadas as respostas com que a pobre Jeanne D’Arc resistia às perguntas manipulativas, chantagens e ameaças de tortura dos juízes, mas, infelizmente para mim, não fui capaz.

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