A reacção da personagem feminina à morte do marido recordou-me imediatamente o enredo-base do filme Sous le Sable, de François Ozon, em que, depois de o marido desaparecer numa praia, a personagem de Charlotte Rampling continua a agir como se ele ainda vivesse com ela.
Percebo bem este tipo de comportamento: revelar uma informação deste género contribui para confirmar não só a sua realidade mas também a da dor que ele nos provoca. Imagino, porém, que no conto de Edith Wharton não se trate apenas de um problema de negação das evidências. A personagem de Wharton percebe rapidamente que, para além de ter de lidar com a dor que não começou ainda a sentir, se verá obrigada a resolver e dar andamento a todos os insuportáveis pormenores concretos inerentes à situação. A vida vai continuando, o comboio avançando, mas ela prefere fazer operar uma espécie de suspensão temporária de funções vitais e de obrigações, como se, entretanto, nada de mais importante pudesse ocorrer do que a chegada da dor.
Se não me engano (não tenho o livro comigo), há também um conto de Raymond Carver intitulado «Três Rosas Amarelas» que se inspira nos últimos dias de Tchékhov, e em que, perante a morte do escritor, a companheira pede ao médico que assina a autópsia para não divulgar logo essa informação, de modo a garantir algumas horas que lhe permitam despedir-se do marido em paz e sossego.
«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk
terça-feira, 15 de janeiro de 2008
A viagem
Entre os contos mencionados numa recensão do livro The New York Stories of Edith Wharton, antologia de contos publicada pela New York Review of Books, fiquei com muita vontade de ler «A Journey», assim descrito por Benjamin Markovits:
«One of the strongest early stories […] describes a woman’s reaction to the death of her husband. She pretends that he is still alive. They are on a train to New York, where her family live, and she worries that one of the stewards will force her to disembark if if he discovers that her travelling companion is a corpse. The madness of her actions has a great internal appearance of reasonableness, and that appearance itself suggests, as nothing else could, the madness of grieving.»
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