«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk

domingo, 6 de janeiro de 2008

Deambular, recolher, guardar, esconder

Desde que li Dickens, ando a pensar na obsessão compulsiva que algumas pessoas têm de acumular objectos e materiais que outras consideram totalmente inúteis: jornais velhos, roupas que já ninguém usa, sacos de plástico ou de papel deformados e vazios, coisas recuperadas ao lixo dos outros. Nalguns casos, o problema pode ser muito grave: as divisões da casa, de tão cheias, vão-se tornando intransitáveis, portas ficam bloqueadas, casas inteiras apenas com exíguos pontos de passagem entre pilhas de tralha. Os proprietários, mesmo assim, são incapazes de se livrar do que vão acumulando sem parar.
Eu tive uma tia-avó assim. Acumulava tecidos, rendas, linhas e botões numas águas-furtadas, na esperança de um dia vir a usá-los em costura. Não gostava de deitar fora nada. Fotografias, documentos e correspondência antiga da família estavam guardados no sótão. Um dia, a minha avó quis queimar a papelada toda para que segredos antigos e bem guardados não fossem descobertos pelos herdeiros que não os conheciam e os segredos desvaneceram-se em cinzas, para grande desgosto da minha tia.
Já pensei muitas vezes que há certas semelhanças entre manter um blogue e a obsessão compulsiva de acumular coisas inúteis e acho até que pode haver uma relação entre algumas manifestações artísticas e este tipo de comportamento. Estou a lembrar-me, por exemplo, das exposições de Rauschenberg e Lucia Nogueira, em Serralves, que visitei no último domingo de 2007. Estes dois artistas trabalharam com objectos encontrados, rejeitados ou perdidos por outros. Para as obras desta exposição, Rauschenberg recorreu a caixas de cartão, diferentes tipos de tecido, cordas, madeiras, couro, pedra, tubos e cabos eléctricos, para além de objectos como cadeiras, jarras, almofadas, uma banheira velha e pedaços de metal usado.

Lucia Nogueira construía as suas obras com materiais e objectos que encontrava nos passeios que dava em Londres: fragmentos de vidros azuis e brancos, esferas misteriosas, armários, arquivadores, fósforos, um lavatório de porcelana, frigoríficos desligados, cabos de borracha, uma campânula transparente, um triciclo de criança parcialmente desmontado. A relação destes objectos com o espaço era uma questão importantíssima no trabalho posterior desta artista. As esculturas parecem ser atraídas pelos cantos, fazem fila quase imperceptível ao longo de paredes. O facto de Lucia Nogueira usar muitas caixas, armários, gaiolas com a porta virada para a parede (e, portanto, inacessível), enquanto a parte de trás se encontra exposta, transmite a sensação de haver neles coisas capturadas, fechadas ou escondidas, que talvez seja preferível não ver.
Objectos e materiais parecidos com aqueles que alguns bloggers usam. Estratégias que nenhum blogger pode afirmar desconhecer.

Imagem: Ends without End, instalação de Lucia Nogueira, 1993

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