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quinta-feira, 27 de março de 2025

O lugar mais perigoso



Se não me engano, há um filme de Jacques Rivette em que uma personagem comenta que o lugar mais perigoso é o palco.

Num dia destes, quando entrei numa sala de teatro para ver uma peça, os actores já estavam no palco. Era como se assistissem com algum interesse ao espectáculo do público a chegar e a instalar-se.

Talvez esperemos o início das peças como esperamos a vida. Uns calam-se e concentram-se; outros falam ou consultam as redes sociais. Há quem se comporte como se não estivesse no teatro. Nesse dia, a dada altura, os arrumadores admoestaram uma senhora na primeira fila, que, para preencher o tempo antes do início do espectáculo, via vídeos bastante ruidosos no telemóvel.

Fecharam-se as portas. Os actores começaram a falar. A dada altura, uma das personagens interpelou directamente o público, encarando alguns espectadores de olhos nos olhos. Houve quem desviasse o olhar.

Há um certo perigo em ir ao teatro.

O teatro, como o kung-fu, é uma arte marcial, uma arte de combate. Isto é verdade não só  do ponto de vista financeiro e cultural. Como diz Dieudonné Niangouna, as companhias de teatro precisam de “abordar as situações com murros” para continuarem a existir, mas o combate não fica por aqui. Numa sala de teatro, o público está de frente para o palco: não pode fingir que não sabe que o teatro é uma arte de confronto; não pode fingir que não vê.

Poucos dias depois dessa minha ida ao teatro, a companhia publicou nas redes sociais umas fotografias em que os actores da peça tinham trocado de lugar: em vez de aparecerem no palco, estavam na plateia. Em algumas fotografias, desviavam timidamente o olhar, numa representação exagerada do constrangimento do público quando interpelado  durante aquela peça. No texto que acompanhava estas imagens, tinham escrito: há espectadores que não sabem que fazem parte do espectáculo.

Também na peça Kung-Fu se interpela o público: “É uma pena que aqueles que costumam vir ao teatro/sejam um público tão asqueroso./ […] Nunca prestais atenção ao combate./Está à vossa frente, mas olhais para o lado.”

Estaremos no teatro como estamos na vida? O filósofo Stanley Cavell salienta que um dos grandes objectivos do teatro é derrotar o estatuto de espectador e ajudar-nos a reflectir sobre os modos como nos situamos na presença dos outros. Permitimos que os outros nos vejam? Sabemos revelar-nos? Ou preferimos permanecer na escuridão? 

Mais perigoso do que o palco talvez seja o lugar do espectador que prefere só assistir. Vendo aquelas fotografias dos actores no lugar dos espectadores, eu, que durante a peça tinha desviado o olhar, perguntei-me se, no teatro como na vida, evitaria as interacções e recearia o palco. É verdade: quer queiramos, quer não, fazemos parte do espectáculo. Como será melhor existirmos: assistindo apenas, ou participando, devolvendo o olhar?

A dada altura, em Kung-Fu, pergunta-se: “Qual o palco do meu teatro?/Qual o palco da minha vida?” Como podemos nós encontrar um palco?

Uma das respostas desta peça é: usando as palavras, contando histórias. A actividade de contar filmes, descrita em Kung-Fu como uma espécie de herança de família, corresponde a uma exploração de possibilidades existenciais: Imagens e mais imagens./Situações mancas/e situações adiadas/porventura compreendidas no cérebro de outrem./Situações em devir/ou mortas de antemão devido a acidentes da narração./Acidentes de escuta./Acidentes ou caprichos do espectáculo./Tudo o que pode acontecer ao correr da matéria.” Às vezes, basta inventar os títulos. Contando filmes, contamo-nos a nós próprios, contamos o que podemos ser.

Quais são as histórias e as palavras que ainda não temos? Quais são as palavras que precisamos de usar? Quais são as histórias que precisamos de contar? O que precisamos de dizer, por ainda não o termos dito?

Mas nesta peça também se lembra: “É preciso palco para além da palavra./Falar a partir dos nervos de alguém.” Neste aspecto, o teatro tem uma vantagem decisiva:  a de ser uma arte encarnada. As palavras são ditas por actores que se confrontam com espectadores de corpo presente. Assim, podem “rasgar o caminho das veias”, “estabelecer a ligação entre o espírito, a imaginação e o acto”.

O facto de haver corpos envolvidos chama a atenção para uma questão importante, quase paradoxal: usando personagens e histórias, o teatro permite que os intervenientes se deixem de personagens e histórias. Esse percurso é assim descrito:Representar a partir de outra pessoa/para dar à luz a minha.” Através do confronto com as personagens e as pessoas, encontramo-nos a nós mesmos, sem personagens: “O ser é o sujeito que é e que parou de assumir personagens.”

Numa entrevista que deu há alguns anos, o actor Ethan Hawke contou que foi protagonista de uma peça em que, quando o público entrava, ele estava deitado no palco. Por isso, ouvia tudo o que os espectadores diziam enquanto se instalavam. Foi uma experiência desagradável porque estas pessoas faziam muitos comentários depreciativos sobre as suas opções na vida, como se não o vissem ali. Talvez vissem só a personagem.

Um lugar muito perigoso também é aquele em que os outros fingem que não nos vêem, ou não vêem mesmo, a ponto de nos transformarem numa personagem. Mas claro que, quando as portas se fechavam e as luzes se apagavam, Ethan Hawke se levantava e encarava os espectadores não só enquanto personagem da peça, mas também como ele próprio era realmente: um perigo. É o que acontece quando nos tratam como personagens: temos uma certa vontade de reagir.

Até que ponto ser só um espectador não é representar uma personagem? Uma máscara atrás da qual nos escondemos? Se nos transformam numa personagem, também é porque deixamos. Desviamos o olhar. Fingimos que não é connosco que falam. No fim da peça, no entanto, temos mesmo de sair do teatro – e de combater pela vida, com golpes de kung-fu, se for necessário.

 

[No Dia Mundial do Teatro, um textinho que escrevi a convite da Renata Portas, quando a Público Reservado encenou a peça Kung-Fu ou Todo o Teatro é Um Combate, de Dieudonné Niangouna (trad. de Regina Guimarães).]

Imagem: Edward Hopper.

 

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