Camilo Huinca
Michael
Bublé não é um grande cantor, mas gosto da
interpretação irónica e forçada que em certos momentos faz da canção «Feeling
Good», mais conhecida na voz de Nina Simone.
Duvido
que isto tenha acontecido por opção inteligente do cantor. Nem sequer tenho a certeza se ele percebe a
letra: acho que só compreenderá bem esta canção quem se tenha sentido realmente
despreocupado pelo menos uma vez na vida. (Pouca gente, portanto.)
Suspeito
que Bublé foi contrariado durante a sessão de gravação. A interpretação começa
suave, tentando parecer elegante e sofisticada,
mas alguém deve ter dito alguma coisa ao cantor que o enervou entretanto. Se
calhar Bublé recebeu um telefonema desagradável. É possível que algum técnico
de som tenha cometido um erro ou um produtor tenha feito um comentário amargo e
dispensável.
Durante
alguns momentos depois dessa contrariedade, Bublé, desconcentrando-se, distraiu-se
da pose habitual. Na voz dele naqueles momentos, uma canção que parece uma declaração
de prazer e de boa disposição transforma-se numa espécie de declaração
agressiva, sarcástica e insatisfeita, de resistência: sinto-me bem apesar dos
fracassos; sinto-me bem contra o mundo; sinto-me bem contra mim próprio; sou eu
contra tudo o que não corre bem. A canção transfigura-se temporariamente graças
à distracção de Bublé, manifestando um sentido que até ali ninguém ou pouca
gente tinha captado nela.
Há, pelo
contrário, cantores que cantam como se não estivessem preocupados com o
resultado. Frank Sinatra, por exemplo, não só canta sobre o amor como se não
estivesse apaixonado como também o faz um pouco distraído, desinteressado.
Talvez
seja preciso estar um pouco distraído, um bocadinho desinteressado, para fazer
uma coisa bem. É possível que só quando, depois de adquirirmos uma certa indiferença à possibilidade de desastre, conseguimos fazer uma coisa importante como
se não importasse ela fique bem feita. Caso contrário, interpõem-se factores
dispensáveis: ambições mesquinhas e grandiosas, a pessoa que queremos parecer,
a pessoa que pensamos ser, quem os outros querem que sejamos – todos menos quem
somos realmente. Tentamos muitas vezes ser Bublé quando podíamos ser Sinatra.