«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Quartos Alugados



Para um texto realmente interessante sobre Quartos Alugados, ler o excelente prefácio da Cristina. Como, no entanto, acredito que só somos felizes se pudermos expressar e partilhar o nosso interesse pelas pessoas e coisas importantes para nós, também quero dizer umas palavrinhas sobre o livro, apontando para as características que me parecem mais invulgares. (Outros valorizarão elementos diferentes.)


Quartos Alugados é um livro que se distingue por ter uma voz narrativa absolutamente única.


Reúne nove contos, escritos num português belíssimo, sem rodriguinhos estilísticos e gramaticais supostamente originais ou idiossincráticos.


Como o próprio autor salientou no lançamento do Porto, a noção de «quarto alugado» deve ser relacionada com personagens numa fase de transição: aluga-se um quarto porque ainda não se pode ter uma casa. Estes contos situam-se em lugares de passagem. As palavras e as acções destas personagens poderiam ser descritos como ensaios e tentativas pouco conseguidas de quem está a aprender a viver.



Uma característica marcante do livro, se calhar aquela que mais suscita a perplexidade e a surpresa do leitor, é o fraco investimento na psicologia das personagens. Não se pode sequer dizer que as acções das personagens manifestam ou concretizam a psicologia destas. As acções parecem cumprir rituais estranhos, realizados para permitir que os protagonistas de algum modo se inscrevam na existência, apesar da leveza e da indefinição que os caracterizam. Por exemplo, no conto «Rua da Velha Lanterna», um dos meus textos preferidos deste volume, o protagonista, deambulando por Paris, leva a cabo uma estranha missão que consiste em desenhar cuidadosamente os lugares em que cinco escritores se suicidaram, e depois, disfarçado de cego, inserir estas cinco imagens entre as páginas de livros de bibliotecas. Cumprida a missão, o protagonista deixa Paris. Não se sabe o que aconteceu antes nem o que acontecerá depois.



As próprias trocas linguísticas que testemunhamos nestes textos se reduzem a fórmulas enunciadas apenas para que a conversa e a vida possam  progredir. Expressões que ouvimos todos os dias por acaso, em conversas ao telemóvel, na rua ou no metro, registadas nestas páginas, exibem toda a sua estranheza ou vacuidade.


Podemos sugerir que estas narrativas se desenrolam um pouco antes do sentido – de tal modo se baseiam na observação e no inventário meticuloso do que é meramente exterior. Gera-se um contraste intrigante entre a insignificância aparente do que está em jogo e o cuidado com que é registado. A cinefilia do autor manifesta-se claramente nesta atenção intensa à superfície das coisas.


Descrevendo a cinematografia de Rohmer, Pascal Bonitzer refere duas noções quase contrastantes: «uma atmosfera de paranóia vaga» e «a ameaça do nada». Em termos simples, a paranóia expressa-se através da atribuição excessiva de sentido a gestos, acções ou acasos. Muitas personagens de Rohmer são absorvidas por interpretações complexas de situações que acabam por revelar-se menos decisivas do que inicialmente pareciam. De acordo com Bonitzer, a obsessão interpretativa das personagens rohmerianas é uma forma de estas responderem à «ameaça do nada» que paira sobre as suas existências: se certos actos tiverem sentido, então há alguma coisa em vez de nada. Por sua vez, os textos de Alexandre Andrade enfrentam directamente a mesma ameaça, mas sem qualquer álibi paranóico. Nestes textos há mais contemplação do que interpretação. O sentido, se existir, virá depois – tanto na vida dos protagonistas, como na vida do leitor.



Talvez o traço distintivo mais importante de um escritor seja persistir em escrever numa voz singular, mesmo que esta seja praticamente inaudível no contexto da barulheira ensurdecedora dos lugares-comuns que nos acossa a todos. É isso que este autor faz todos os dias.


 

 

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