
Depois de uma tese de mestrado sobre Masolino, Arasse planeava escrever a tese de doutoramento sobre S. Bernardino de Siena. Naquele momento crítico em que a bibliografia está lida e as ideias mais ou menos organizadas, pouco antes de se começar a escrever, Arasse levava para todo o lado um saco pesado de aparência valiosa onde guardava todos os papéis e livros com que iria trabalhar. Um dia, em Florença, esse saco desapareceu-lhe da mala do carro.
Arasse conta que na altura colocou vários anúncios desesperados nos jornais e chegou a rezar a S. Bernardino pela recuperação do material perdido. Tudo em vão. Depois acrescenta que suspeita que S. Bernardino tivesse um segredo e por isso não quisesse que a tese fosse escrita. O roubo ter-se-ia dado por intercessão do santo.
Por acaso, tenho uma explicação diferente. Embora haja momentos difíceis na história de redacção de uma tese, não há nada tão horrível como o momento em que o trabalho preparatório está terminado. Logo que se tenta começar a escrever torna-se evidente que a tese genial que há meses vínhamos idealizando afinal não terá nunca existência real. Nunca estamos à altura daquilo de que nos imaginamos capazes. O início da redacção de uma tese é um momento de agora ou nunca: trata-se de optar entre viver com aquilo que somos capazes de fazer ou simplesmente passar a alimentar durante anos o que imaginamos mas somos incapazes de realizar.
Durante a redacção da tese é preciso optar permanentemente por continuar a escrevê-la em vez de parar ou destruir todos os documentos relacionados com ela. (No meu caso, todos os dias desejava secretamente que os meus gatos descobrissem um botão mágico que apagasse a tese e todas as cópias que dela tinha guardado, quando, cansados de me ver horas a fio a olhar para um écran em vez de lhes prestar a devida atenção, iam para cima do teclado. Todos os dias colocava a hipótese de abandonar o tema e escolher um assunto em que os meus esforços pudessem não me desiludir tanto.) Mas o mais difícil de tudo é começar: quanto mais se escreve, mais fácil é continuar a escrevê-la e mais custa perder o que já se conseguiu.
O segundo momento mais difícil é o da conclusão da tese: qualquer discussão de um tema pode continuar ad aeternum sem o esgotar. Há uma altura em que ou entregamos a nossa tese imperfeita ou passamos o resto da vida a tentar melhorá-la sem que isso nos faça necessariamente sentir mais satisfeitos.
Quanto a Arasse, depois da tese roubada, decidiu que não ia repetir o trabalho já feito, a investigação, as fotografias. Achou melhor mudar de tema e de orientador; e fez o doutoramento sobre uma questão diferente. Ainda hoje continua a pensar sobre S. Bernardino de Sienna, que considera um assunto apaixonante.
Cá para mim, foi Arasse que suprimiu o próprio saco. Uma tese roubada é o sonho secreto mais querido de qualquer candidato a mestrado ou a doutoramento.