«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Animais na cabeça




Ando a ler uma tradução de Walser que saiu em 2005: Jakob Von Gunten. Não sou grande leitora de saídas recentes. Para dizer a verdade, os motivos que me fazem escolher um livro relevam muitas vezes da natureza do capricho. Desta vez, por exemplo, peguei no romance de Walser simplesmente por ter encontrado estas duas belíssimas capas num blogue.
Ainda vou muito no início. Para já, no passo que se segue, gostei imenso da relação inusitada que se estabelece entre contar histórias, estar deitado na cama vestido e calçado e infringir os regulamentos:

«Nós, eu e ele, muitas vezes nos deitamos juntos na cama do meu quarto, vestidos, sem tirar os sapatos, e fumamos cigarros, o que vai contra os regulamentos. Schacht gosta de infringir os regulamentos, e eu, digo-o abertamente, não gosto menos. Contamos grandes histórias um ao outro, enquanto estamos assim deitados, histórias da vida, ou seja, reais, mas sobretudo histórias inventadas com acontecimentos que apanhamos do ar. E então à nossa volta tudo parece levemente ressoar num movimento ascendente e descendente ao longo das paredes. O quarto estreito e escuro estende-se, surgem estradas, salões, cidades, palácios, pessoas e paisagens desconhecidas, trovões e sussurros, prantos e conversas, e assim por diante.»

Jakob Von Gunten, de Robert Walser
Trad. Isabel Castro Silva, Relógio d’Água, p. 15

Acidentes

Via BiblioOdyssey

Eu diria que há um tudo-nada de abrangência excessiva em quase todas as descrições de acidentes cardíacos que conheço. «Dor no peito que vai para o pescoço, queixo, braços ou costas, mal-estar, suores frios e sensação de náuseas ou vómitos», «a dor não varia com a respiração ou mudança de posição»: o elenco dos sinais de enfarte proposto pela Coordenação Nacional para as Doenças Cardiovasculares nos anúncios de uma nova campanha de divulgação, por exemplo, podia funcionar também não só como descrição válida de um simples ataque de pânico, mas até como narrativa impressionista da segunda e da terceira décadas da minha vida.


quinta-feira, 2 de outubro de 2008

Meu querido Verão de 2008


Tão pouco sol apanhei durante o Verão de 2008 que chego por vezes a recear que a palidez me dissolva definitivamente os traços do rosto. De contacto com o mundo exterior limitado à observação através da janela de um escritório com vista para uma esplanada e um pequeno jardim, habituei-me a medir as horas do dia através da comparência de certas figuras, reconhecendo os frequentadores assíduos do café como elementos importantes da minha vida.
O dia a começar através da montagem dos guarda-sóis e da arrumação das mesas e das cadeiras, ecos metálicos pelo ar. Uma lufada de vento mais forte, a meio da manhã, fazendo os guarda-sóis desabar sobre os clientes mais adormecidos; os gémeos jogando futebol sobre a relva, com sandálias verde fluorescente; o dentista bodybuilder e motard fumando um cigarro antes de ir trabalhar.
Julgar-se-ia que um homem e uma mulher envergando camisas no mesmo invulgar tom de rosa-choque, lado a lado mas em mesas diferentes e sem se conhecerem, fossem mais adequados a um filme de Rohmer do que a um café de Telheiras observado por alguém que sofre de enxaquecas e apesar disso tenta organizar as ideias durante o Verão, mas pormenores insólitos e dissonantes ocorrem invariavelmente a meio da tarde.
De entre os figurantes e protagonistas da esplanada, chamava-me sempre a atenção um senhor de alguma idade que aparecia sozinho com um cãozinho branco de aparência pouco simpática. Muito nervoso, o cãozinho rosnava a qualquer outro animalzito que lhe acontecesse avistar ao longe. Bastava o dono deixá-lo cá fora enquanto ia pagar para ele armar grande chinfrineira. Optar por ficar dentro do café e deixá-lo no exterior era a garantia mais certa de cerca de meia-hora de latidos lancinantes e de três parágrafos para deitar fora.

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Machado de Assis, conhecido

Fico um bocado perplexa quando se fala do desconhecimento da obra de Machado de Assis em Portugal. Pelo menos durante a década de noventa do séc. XX, a cadeira de Literatura Brasileira foi obrigatória para o curso de Estudos Portugueses, e opcional para as variantes de Línguas e Literaturas Modernas que incluíssem Português na Faculdade de Letras do Porto. Nesse tempo entravam por ano em cada variante à volta de 60 alunos. Durante esses anos, eu e centenas de outros alunos estudámos não só Machado de Assis (contos e o romance Memórias Póstumas de Brás Cubas), mas também Guimarães Rosa e Clarice Lispector. A cadeira de Literatura Brasileira era assegurada pelo Prof. Arnaldo Saraiva, um excelente comunicador. Muita gente lia depois mais romances de Machado de Assis: Quincas Borba e Dom Casmurro estavam disponíveis no mercado em edições baratinhas da Lello & Irmão.
Não percebo, portanto, que se fale de desconhecimento. Falar-se ou não de um autor nos jornais e em blogues não significa necessariamente que ele é conhecido ou desconhecido. Muita gente em Portugal fala de Proust, por exemplo, e parece-me que Proust é menos lido e, por conseguinte, menos conhecido do que Machado de Assis.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Aviso à navegação


Para quem não saiba, terminei na semana passada a minha tese de mestrado. Nos últimos doze meses, só duas coisas me distraíam satisfatoriamente dos problemas que andava a tentar resolver: confeccionar sobremesas complicadas e ler ficção. Esta circunstância conduziu-me a duas constatações: embora não tenha vocação para fada do lar, posso ser uma leitora voraz.
Li muita coisa, muito depressa. Como sinto uma certa necessidade avassaladora de escrever sobre coisas diferentes (a tese é sobre cinema), é possível que apareçam alguns posts sobre literatura nos próximos tempos. Haverá citações.

Premiados surpreendentemente bons

Em 2007 o Booker Prize foi atribuído a The Gathering, de Anne Enright. (Publicado em Portugal pela Gradiva, com o título Corpo Presente.) Os resumos na contracapa e as referências nos jornais que descreviam este romance como o retrato de uma família que vale também como retrato de um país contribuíram para me afastar dele durante bastante tempo.

Cheguei ao livro porque por acaso alguém citou a última frase e gostei dela. Folheei-o depois numa livraria. A primeira frase também é muito boa. O livro de Anne Enright começa assim:
«I would like to write down what happened in my grandmother’s house the summer I was eight or nine, but I am not sure if it really did happen.»
A leitura do que se segue lembra-me que a vida acontece sem relações de causa/efeito, sem advérbios de modo e sem marcadores temporais. Contar histórias não é um mecanismo literário gasto: é aquilo que, dentro ou fora da literatura, fazemos para compreender. Sem contarmos histórias não teríamos a certeza se certos episódios sucederam realmente, nem saberíamos explicar quando, como, onde, ou por que razão aconteceram.

Anne Enright

Logo na segunda página, a narradora diz:
«I do not know the truth, or I do not know how to tell the truth.»
Dentro e fora da literatura, a verdade é aquilo que uma narração vai construindo discursivamente.
Aceito que a dificuldade reside na zona movediça que a necessidade de contar histórias instala entre ficção e vida real: tanto a ficção como a vida consistem em coisas que sentimos necessidade de contar e de articular em narrativas. A questão é que talvez seja precisamente esta indistinção que nos faz continuar não só a ler, mas também a viver e a contar histórias sobre isso.

quarta-feira, 24 de setembro de 2008

The beast that kept me inside

Allison Sommers

Parece-me que já vejo a margem.

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Flooded street

Lucknow, India: A man carries drinking water through a flooded street

«Water, water, every where,/Nor any drop to drink.» Imaginem-me por impróprias águas para consumo, com um pequeno depósito de água potável em equilíbrio precário sobre a cabeça, extraído a custo sabe-se lá de onde e como. Se entretanto não for arrastada pela corrente e por acaso conseguir chegar viva à margem longínqua, aviso.

quarta-feira, 30 de julho de 2008

Abandonados


Um jogo de computador onde pudéssemos descarregar as imagens e as recordações do que tivemos de deixar para trás (os sítios onde vivemos tal como eram então, as pessoas que os habitavam, cadernos de escola, brinquedos, as roupas que usámos, produtos que comprávamos e entretanto deixaram de ser comercializados, animais de estimação, sons que deixámos de ouvir) para depois os visitarmos.


Este jogo de aventuras um duplo objectivo haveria de servir. Por um lado, comprovarmos de vez em quando que o nosso passado de facto aconteceu, em vez de ter sido simplesmente imaginado. Por outro, esclarecermos se tudo aconteceu tal como nos lembramos, e não de outra maneira menos fabricada.

quarta-feira, 23 de julho de 2008

Vivem em nós inúmeros

Antes de se tornar realmente famosa, Kidman tinha uma aparência um pouco selvagem que a distinguia das outras (olhos e sorriso descontrolados, cabelo ruivo abundante com um frisado aparentemente indomável). Entretanto, parece, infelizmente, ter cumprido um percurso de transformações plásticas que lhe diluíram os traços distintivos, estampando-lhe no rosto a mesma expressão ausente de tantas actrizes e aspirantes a actrizes de Hollywood.
Só em filmes como Margot at the Wedding, em que aparece com um aspecto ligeiramente diferente do habitual e assume personagens pouco convencionais, consigo reencontrar a memória da imagem dela pré-cirurgias.

Fotografia de Mary Ellen Mark

Gostei muito de a ver em Fur, por exemplo (que quase toda a gente detestou, já sei, mas eu não). Na altura até guardei esta fotografia que saiu na Vanity Fair da actriz enquanto Diane Arbus. O cabelo, a posição das mãos, o olhar mal domesticado lembram-me coisas em que acho saudável pensar de vez em quando.

sábado, 19 de julho de 2008

I remember you well

Nos últimos tempos, por vários motivos que desejo ardentemente sejam o mais passageiros possível, só ouço a música que tenho no computador e esta tem de reunir algumas características especiais: funcionar bem quando ouvida baixinho, não perturbar os gatos (que se enervam com algumas coisas tipo Coldplay, Arcade Fire e a banda sonora de Música no Coração), não adormecer, não desconcentrar e não contribuir para elevar os níveis já de si naturalmente próximos da toxicidade do meu desespero. Isto, acreditem, deixa-me pouco por onde escolher. Passo o dia a ouvir coisas que não me entusiasmam particularmente só porque instalam um ritmo que me ajuda a raciocinar.
Nem sempre fui a péssima ouvinte de música que hoje sou mas nunca fui uma melómana fiável. Quando compro um disco, encontro invariavelmente uma ou duas faixas que ouço em repeat até à exaustão, esquecendo as outras. Não é bonito.
Vivo numa casa com muitos discos de Leonard Cohen, mas não acho que ele seja «um dos maiores artistas de sempre», como ouvi anunciado na televisão a propósito do concerto de hoje. (Prefiro, sei lá, Proust e Miguel Ângelo.) Nem sequer gosto especialmente da voz dele. Ouço muitas vezes First We Take Manhattan e Famous Blue Raincoat, mas, sacrilégio pop, optando frequentemente pelas versões de Jennifer Warnes. É verdade que certo Verão pouco mais ouvi para além da faixa Take This Waltz; hoje, contudo, não consigo ouvi-la duas vezes seguidas.

Imagem de Linda Troeller

Seria incapaz de comparar a audição de um disco a uma experiência religiosa. A única experiência religiosa de que me lembro é a de ter desmaiado numa igreja na adolescência durante uma missa a que assisti sem tomar o pequeno-almoço, depois de uma noite com poucas horas de sono, num dia muito quente, ao mesmo tempo que estranhamente me recordava de uns versos de Chuva Oblíqua.
Para momentos mesmo críticos, reconheço, no entanto, que guardo no computador uma pasta com algumas músicas que não só me desconcentram como perturbam os gatos, não podendo ser ouvidas a não ser com um volume bastante elevado. E uma delas, por acaso, é de Leonard Cohen.

PS: Nada a fazer, Henrique. O problema é a minha alma ter um fundo pop que não consigo ignorar e com que, para dizer a verdade, até simpatizo.

quinta-feira, 17 de julho de 2008

Of taxis and cats

É possível que quem viaja de táxi com gatos regularmente corra o risco de se habituar a dividir a humanidade em três categorias:

- os que cobram legitimamente uma taxa de cerca de quatro euros para transportar dois gatos (dois euros por cada, a lei assim o permite);
- os que cobram apenas dois euros ainda que transportando dois gatos;
- os que não cobram nada.

Ter ou não ter gatos é estranhamente irrelevante para a equação. Os que cobram a taxa na totalidade são por vezes orgulhosos e conversadores donos de gatos .

E você, caro leitor, se fosse taxista, quanto cobraria?

segunda-feira, 7 de julho de 2008

A natureza do lugar


Na China, um tapete de algas invadiu a área em Qingdao em que iriam ter lugar as competições de vela dos Jogos Olímpicos. Conta-se que centenas de soldados e cerca de 10 000 cidadãos estão empenhados na desobstrução da zona de modo a assegurar a realização das provas.

Conheci em tempos uma pessoa que sempre que havia derramamentos de petróleo no oceano começava o dia de trabalho analisando nos jornais a progressão da mancha em direcção à costa e os efeitos destrutivos da catástrofe ecológica, como se esses percursos lhe revelassem coisas sobre a própria vida.


Também eu tenho seguido o problema das algas na China com o entusiasmo comedido com que acompanharia o relato da minha existência se este estivesse a ser publicado online.



Os entendidos descrevem as condições oferecidas por Qingdao como sendo difíceis mesmo sem algas: ventos mais fracos do que seria desejável, correntes excessivamente fortes e um nevoeiro denso que frequentemente impede a navegação. Àqueles que sugerem ser a invasão das algas uma questão de má sorte ou de maldição, os entendidos respondem que o problema reside apenas na natureza do lugar.
Os responsáveis, por sua vez, insistem em lembrar que não têm plano B.


sábado, 5 de julho de 2008

A senhora da romã

Para mim, alguns dos passos mais inesquecíveis da Recherche são as descrições de Odette enunciadas a partir do ponto de vista de Swann: os desvios em relação aos padrões de beleza que o esteta cultiva acabam por atrair ainda mais a sua atenção relativamente àquela com que acabará por casar.
Gosto muito da noção de alguém a descrever uma pessoa que o interessa apesar de não corresponder a padrões convencionais. Tenho pensado nisto porque, um pouco por acaso, venho ultimamente encontrando várias descrições de beleza feminina imperfeita nas coisas que ando a ler.
Não me consigo lembrar de muitos retratos deste género e tenho até a suspeita de que só grandes escritores são capazes de captar de forma superior não só a mistura subtil de atracção e repulsa suscitada por um objecto de desejo imprevisto, mas também a investigação que tal desconcerto pode desencadear.


Na descrição de Nabokov gosto da noção de expansão desordenada da carne:
«Mas havia um [retrato] que dominava todos com a moldura fantasista cravejada de granadas; mostrava a três quartos uma magra e morena jovem com vestido justo, olhos corajosos e cabelo farto. […] Sim, porque ela mesma é quem ali estava – embora os meus olhos tentassem devassar-lhe as formas actuais, sem nenhum êxito, para extrair delas a graça daquela criatura que lá tinham metido dentro.»
(Na outra Margem da Memória, trad. Aníbal Fernandes, Difel, p. 90)


Na descrição de Kosztolányi agradam-me os efeitos do tempo e da corrupção:
«Na verdade, que magnífico animal [Orosz Olga] não era, que gatinha, sem fé, nem lei. E já não era jovem. Passara os trinta, talvez os trinta e cinco. Mas a carne era flácida, voluptuosa e cansada, como se as inúmeras camas estrangeiras, os inúmeros braços estrangeiros, a tivessem adoçado, e o rosto era suave, como a polpa de banana, os seios como dois breves cachos de uvas. Habitava nela uma espécie de inocência a corromper-se, o definhamento iminente e a poesia da morte. Expirava o ar, como se lhe queimasse a boca, como se, na pequena boca devassa, lambesse uma guloseima, saboreasse um champanhe.»
(Cotovia, trad. Ernesto Rodrigues, D. Quixote, p. 89)


Para ler algumas descrições de Odette na Recherche, clicar nas alíneas associadas a Botticelli.


sexta-feira, 4 de julho de 2008

Animais com gatos

Num destes dias, no metro de Telheiras, cruzei-me com uma senhora africana que trazia uma criança pela mão e transportava uma grande trouxa sobre a cabeça. Vinha subindo pelas escadas rolantes, numa direcção inversa à minha. Era muito bonita.
Eu própria venho de um sítio onde ainda conheci mulheres capazes de percorrer dois quilómetros a pé equilibrando sobre a cabeça um recipiente com flores para vender ou para enfeitar campas no cemitério. Independentemente da idade, tinham os pescoços mais elegantes que já vi.
Segundo o autor da peça, o gatinho da imagem representa uma homenagem bem-humorada aos bibelôs domésticos e à sua capacidade de ignorar elementos como gravidade, escala e leis da natureza, mas não me venham dizer que não andamos todos por aí com coisas estranhas, em equilíbrio precário, sobre a cabeça. Dá-se simplesmente o caso de ninguém as ver.

quinta-feira, 19 de junho de 2008

Narrativas mesmo micro

Hemingway costumava dizer que o seu melhor texto tinha apenas seis palavras:
«For sale: baby shoes, never worn.»

Aqui há uns tempos, o Guardian propôs o desafio das seis palavras a alguns escritores conhecidos.

Alexandre O'Neill tem uma micronarrativa em forma de poema telegráfico que obedece à regra das seis palavras:
«JORGE / Podes vir. / Mamã, enfim, morta.»

Num destes dias, vi na televisão uma florista que imprime mensagens em pétalas de flores dizer que a frase mais enigmática e intrigante que se lembrava de ter inscrito numa rosa era:
«Só mais cinco minutos.»

Cinco minutos de quê?
A cada um a sua pequena história.

Londres para aficionados

Para quem gosta da cidade ou planeia visitá-la em breve, alguns belíssimos posts no Dias com Árvores , escritos a propósito de uma visita recente:

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Os pássaros de Shakespeare

Via Robotwalrus

É tão raro encontrarmos histórias sobre desejos e sonhos nas televisões e nos jornais, por entre os episódios gratuitos de ganância e violência que por lá abundam. E, no entanto, desejos e sonhos são uma componente importante e por vezes decisiva de todas as vidas.
De Eugene Schieffelin pouco mais se sabe para além do facto de ter libertado sessenta estorninhos europeus no Central Park de Nova Iorque em 1890 e outros quarenta em 1891. Conta-se que Schieffelin agiu movido pelo desejo de que os americanos pudessem ver no seu país todos os pássaros mencionados nas peças de Shakespeare.
Schieffelin terá depois chegado a tentar introduzir piscos, tentilhões, rouxinóis e cotovias nos Estados Unidos, mas sem o sucesso que obteve com os estorninhos. Os descendentes dos estorninhos de Schieffelin são actualmente tão numerosos no país que é bem possível que se tenham tornado mais conhecidos lá do que o próprio escritor inglês que os referiu apenas uma vez na sua obra.
E foi assim que o capricho vagamente literário de um excêntrico alterou a fauna dos Estados Unidos.
Se Schieffelin tivesse feito o mesmo hoje, provavelmente nunca teríamos sabido.


segunda-feira, 16 de junho de 2008

O cão que traz um pau na boca

«Um grande inventor respondeu um dia a quem lhe perguntava como fazia para ter tantas ideias novas:’pensando ininterruptamente nelas’. E de facto bem pode dizer-se que as ideias inesperadas nos vêm porque estávamos à espera delas. São, em grande parte, o resultado conseguido de um carácter, de certas inclinações constantes, de uma ambição tenaz, de uma incessante ocupação com elas. Que tédio, uma perseverança assim! Mas vista de outro ângulo, a solução de um problema intelectual não acontece de modo muito diferente, como um cão que traz um pau na boca e quer passar por uma porta estreita; vira a cabeça para a esquerda e para a direita tantas vezes até que consegue passar com o pau; o mesmo acontece connosco […]; de repente estamos do outro lado, e sentimos claramente um ligeiro desconcerto em nós pelo facto de as ideias terem vindo por sua iniciativa, em vez de esperarem pelo autor.»

O Homem Sem Qualidades, Musil
p. 165 (trad. João Barrento)


Um dos meus passos preferidos até agora.


Moondust will cover you

Num dos feriados, umas cassetes antigas em que não apontei as músicas que na altura gravei deram origem a um difícil jogo de identificação. Por um lado, nomear os intérpretes. Por outro, perceber o que me teria passado pela cabeça ao escolher, há tanto tempo, aquelas faixas.
De repente, dei por mim a pensar que a inesperada combinação poderia estar a revelar-se uma banda sonora adequada ao presente, como se a pessoa que então fui tivesse adivinhado que, anos depois, alguém como ela pudesse vir a precisar de ouvir certas músicas outra vez, naquela ordem, durante um jogo desprovido de consequências.
Noutro destes dias, saí pela primeira vez do cinema antes de um filme acabar. Foi durante Rocco e os seus Irmãos. Depois de duas horas de filme, fiz as contas. Se ficasse na sala, ainda teria quarenta e cinco minutos de gritos e vinganças a suportar. Não estou nada arrependida. Visconti é sobrevalorizado.

[Cravo Bem Temperado, Garbage, Blur, Passengers, David Bowie, Radiohead]


sexta-feira, 6 de junho de 2008

Flutuar, flutuar


Há que reconhecê-lo. Nunca nenhum outro blogue se aproximou tão perigosamente da condição de agregado de lemas e descrições de fim-de-semana: tenho andado ocupada com certas questões teóricas e argumentativas, uma complexa intriga policial que exigiria a presença de Sherlock Holmes para ser deslindada.
Hoje, para variar, proponho este sortido de links.
  • Comecei o primeiro volume de O Homem Sem Qualidades. Digamos que não é propriamente leitura fácil. Esta é para a Cristina:
    «A régua de cálculo: […] um pequeno símbolo que se traz no bolso do peito e se sente sobre o coração como um risco duro e branco. Quando se tem uma régua de cálculo e alguém nos vem com afirmações bombásticas e sentimentos grandiosos, dizemos-lhe: Espere um momento, vamos primeiro calcular a margem de erro e o valor provável de tudo isso!» (p. 69.).

  • A propósito da Feira do Livro, gostei muito da primeira visita do Francisco José Viegas. Como quero sempre saber quem lê o quê, divirto-me todos os dias com os posts «É fazer as contas» do Blogue do JL.

  • No excelente Os Livros Ardem Mal, entre outros posts dignos de nota, este, sobre um Animalário. Ainda sobre animais, ver Domesticated, uma série de fotografias que Amy Stein elaborou a partir de histórias supostamente reais sobre interacções inesperadas entre pessoas e vida selvagem: «We at once seek connection with the mystery and freedom of the natural world, yet we continually strive to tame the wild around us and compulsively control the wild within our own nature. Within my work I examine the primal issues of comfort and fear, dependence and determination, submission and dominance that play out in the physical and psychological encounters between man and the natural world.»

  • Muita curiosidade em relação a um certo livro que se vem anunciando por aqui: Belvedere, Kripp.

  • O que aconteceu ao blogue Bandeira ao Vento: ainda estou em denial.

  • Via Ciberescritas, um conceito interessantíssimo, que até agora, infelizmente, não teve ainda resultados muito entusiasmantes.

Animais com gatos


segunda-feira, 2 de junho de 2008

Fins-de-semana

Bichos

Sobreposições inesperadas entre animais e pessoas na exposição patente na Galeria do Museu Bordalo Pinheiro (Campo Grande, em frente ao Museu da Cidade, entrada grátis).
Gostei especialmente dos quadrinhos de Miguel Branco: figuras antropomórficas com um rosto cujas contorções de tinta escapam ao humano. Diria que vemos assim o rosto das pessoas antes de sabermos que estamos a vê-las.
Para chegar à Galeria, atravessar um corredor exterior encimado por glicínias perfumadas.

Graffiti
Numa das casas de banho do King, ala feminina, um retrato a lápis de Ludivine Sagnier e seis versos de Rilke.
O filme de Chabrol protagonizado pela actriz, apesar de ter um cartaz bonito, não é grande coisa, infelizmente. (O corte de cabelo de Benoit Magimel, valha-me deus.)

Feira do Livro
Para uma História da Alimentação de Lisboa e seu Termo, de Alfredo Saramago e Lendas, de Gustavo Adolfo Bécquer, ambos em saldo na Assírio&Alvim.

Mais do mesmo
Compro o Expresso com a esperança de encontrar informação sobre os filmes do festival de Cannes. Só duas páginas sobre o assunto. Nenhuma referência elucidativa a filmes de realizadores que me interessam (Desplechin, Garrel, Nuri Bilge Ceylan, etc.). Na Revista, dezenas e dezenas de páginas sobre futebol, desde o Euro até Figo. Isto de comprar jornais que só me vendem aquilo que já encontro em toda a parte não leva a lado nenhum.

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Lemas de fim-de-semana


Make mistakes faster.
(via An Incomplete Manifesto for Growth, de Bruce Mau)

Imagem: Instalação do artista coreano Do-Ho Suh na exposição Psycho Buildings da Hayward Gallery (Londres)

terça-feira, 27 de maio de 2008

Animais com gatos

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Fins-de-semana

Feira do Livro
Fui no domingo. Muita gente e, hélas!, fila interminável para as farturas.
A diversidade, para mim, é um dos grandes atractivos da Feira. Sou totalmente a favor da liberdade de escolha do modelo do pavilhão. Os pavilhões da Leya, com uma luz estranha e desagradável no interior devido à cobertura vermelha, transmitiram-me, no entanto, a sensação de escassa variedade de títulos disponíveis. O espaço para as pessoas circularem no interior pareceu-me exíguo para tanta gente. O facto de os livros não terem preços marcados também se revelou uma grande falha.
Por outro lado, a D. Quixote estava a fazer desconto de 40% no primeiro volume de O Homem Sem Qualidades e só por isso já merecia um beijinho. Livros do Dia que não interessam a ninguém são um mal desnecessário.
Quanto às minhas compras, para além de Musil, Verão, de Edith Wharton (Relógio D’Água) e dois Nabokov a preços reduzidos: Na Outra Margem da Memória – uma autobiografia revisitada (Difel) e Aulas de Literatura (Relógio D’Água).
Muitas coisas ainda por explorar. Nem sequer me consegui aproximar dos saldos da Assírio&Alvim. No meio da multidão, Pedro Costa e Paulo Rocha, dois heróis do cinema português.

Indiana Jones
Sou fã. O meu preferido é o terceiro. Ainda hoje me comove a sequência que culmina com a descoberta do Graal: o «leap of faith» que Indiana Jones tem a coragem de dar sobre o abismo, a ponte invisível que se materializa sob as botas gastas do herói, o combate inesperadamente fácil com o cavaleiro imortal, os critérios da escolha do cálice.
Em todos os filmes, gosto da arquitectura dos cenários: túmulos, subterrâneos, túneis, passagens secretas, armazéns de acesso interdito. Sigo com muita atenção os momentos em que as personagens decifram instruções, resolvem enigmas e superam provas para chegar àquilo que procuram ou pensam procurar.
Deste quarto filme não saí totalmente decepcionada porque me agradaram a sequência nos armazéns americanos e a breve passagem pela aldeia de testes nucleares, a descoberta e a visita ao túmulo de Francisco de Orellana (decerto com uma versão mais longa a sair em DVD) e todo o percurso pelo templo das caveiras de cristal.
Hitchcock dizia que um vilão tem de ter charme e suscitar um mínimo de empatia, mas tudo indica que poucos foram os que aprenderam a lição. A personagem de Cate Blanchett, caricatural e histriónica, parece-me, neste sentido, totalmente falhada e excepcionalmente irritante. Um filme deste género depende muito da actuação de um adversário bem conseguido, essa guerra não foi ganha aqui e o filme como um todo saiu a perder.

São como as palavras
Já tinha lido sobre elas na blogosfera. Vi depois umas pessoas na televisão numa espécie de festival de cerejas no Porto, comentando os preços:
- Encontrei a dois euros e cinquenta num hipermercado. Comprei um quilo por cinco euros no Bulhão.
Uma senhora a dizer que ia comer sozinha uma caixa de cerejas inteira, depois de as fotografar e enviar as imagens para o Brasil.
Comprei a três euros e trinta, aqui em Lisboa, no sábado, enquanto uma adolescente, chocada, interpelava outra que usava a balança no supermercado:
- Vais gastar todo o dinheiro que tens em cerejas?

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Lemas de fim-de-semana

Uma questão de palavras, de fonte, de pele e de parte do corpo




Dickens, Kurt Vonnegut, Bjork, uma definição retirada de um dicionário, Leonard Cohen, Dylan Thomas, Harper Lee (To Kill a Mockingbird), e muito mais:

Na imagem, uma belíssima citação de Jeanette Winterson.

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Un sandwich e un po’d’indecenza

Estive sem Internet. Quando a linha telefónica voltou já havia nova data para a Feira do Livro. Come mi Vuoi? e Lupi Spelacchiatti, do disco Tournée, em repeat, vou compondo mentalmente uma lista incompleta de compras a fazer: Musil, catálogo Griffith da Cinemateca, Deszo Kosztolányi, livro sobre aves de Lisboa…
Para quem estiver sem ideias e gostar de grandes narrativas com presença forte da natureza e do inumano, duas sugestões: A Saga de Gösta Berling, de Selma Lagerlöf, e Gente Independente, de Halldór Laxness, ambos da Cavalo de Ferro. Não são saídas recentes mas não deviam ser esquecidos.
Amanhã é feriado. Como não sou grande espingarda a italiano, percebo só algumas coisas que o Paolo Conte diz. Invento o resto.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Colecção de mãos

Não sendo um dos filmes de Hitchcock que prefiro, The Man Who Knew Too Much (1956) tem alguns momentos absolutamente geniais.
Uma das sequências mais inesperadamente belas do filme desenrola-se no mercado de Marraquexe. A dada altura, por entre o caos de comerciantes, carregadores, marroquinos e turistas de várias nacionalidades, chama a atenção das personagens uma perseguição. Apesar de inicialmente ser observada ao longe, esta desordem vai-se aproximando gradualmente dos protagonistas, a ponto de, depois de ser atingido nas costas com uma faca, o perseguido vir, inesperadamente, morrer nos braços de James Stewart, que só tem tempo de lhe amparar o rosto com as mãos.

A relação dos protagonistas com o incidente vai-se tornando cada vez mais próxima. No momento em que tenta pousar o incómodo corpo, James Stewart reconhece o homem, apesar de este aparecer disfarçado com trajes marroquinos e de ter o rosto coberto com maquilhagem.
É um momento imprescindível para a progressão narrativa do filme: antes de morrer, a vítima, que afinal é um espião, revela um segredo de de que dependerá toda a restante acção do filme. Nestes momentos cruciais, Hitchcock, no entanto, não hesita em recorrer a planos absolutamente destituídos de qualquer contributo especificamente narrativo.

As mãos de James Stewart sujas de maquilhagem, a mancha azul nas costas da mão do espião,

destacam-se como fragmentos desarticulados da continuidade da acção, manchas vazias, gratuitas, episódios sensoriais que captamos antes de percebermos exactamente para que servem, o que são.

Pouco depois, neste filme, já em Londres, também gosto muito da visita de James Stewart ao taxidermista, toda uma sequência desnecessária do ponto de vista da progressão narrativa.

Interpretando mal uma indicação, James Stewart, em busca de informações sobre o filho sequestrado, faz uma visita a uma pessoa que depois descobre ser o proprietário de um estabelecimento de taxidermia. A troca de mal-entendidos que se processa no estranho espaço, com os animais empalhados e as movimentações dos funcionários em pano de fundo, é absolutamente hilariante. A dada altura, proprietário e funcionários começam a desconfiar do inocente James Stewart e a discussão intensifica-se.

James Stewart, ainda mais confuso do que antes, vê-se obrigado a fugir. A acção principal do filme pode, então, prosseguir.

terça-feira, 13 de maio de 2008

Always thinking about food


Glen Baxter move-se com grande frequência num universo de personagens de rosto relativamente inexpressivo, envergando roupa de tweed, de cowboy ou de explorador, mas grandes conhecedoras de teóricos da literatura polémicos, de profundas problemáticas da filosofia e de escritores perturbadores como Kafka.
Perante a associação inesperada entre texto e imagem nestes cartoons, é fácil darmos por nós a tecer relações vagamente duvidosas a partir de outras coisas que conhecemos (não só textos e imagens), a inventar histórias incongruentes, ainda que com remotas possibilidades de ocorrrência.



A mim, a fome da rapariga francesa deste cartoon sempre me fez recordar a voracidade sanguinária da menina do quadro de Magritte. Depois de descobrir que Glen Baxter é um grande admirador do pintor surrealista belga nunca mais deixei de acreditar que podia ser a mesma personagem, apenas mais velha, mais gorda, mais mal vestida e algo desorientada.


Gostar de pássaros a ponto de os ingerir crus nunca há-de levar ninguém muito longe, parece-me.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

H is for Hitchcock

O adjectivo «idílico» é frequentemente usado em referência ao trabalho de Susan Homer. Os comentadores gostam de falar da sua visão idealizada do mundo e da vida doméstica.
Por mim, não capto necessariamente harmonia nas telas desta artista. Nos passarinhos que segundo alguns suscitam empatia da parte do observador vejo apenas um elemento disruptivo e até um pouco ameaçador. Desde quando costumam os pássaros tomar chá?


A improvável relação entre pássaros e chávenas está presente tanto no conto «The Birds», como no filme com o mesmo título que Hitchcock realizou a partir do texto de Daphne du Maurier.
Numa das sequências mais belas do filme, depois do ataque de pássaros na festa de anos de uma criança, tem lugar um novo ataque, desta vez dentro de casa. Acontece repentinamente, logo depois de uma das personagens reparar numa amorosa avezita saltitando junto à lareira.

Apesar de esta visita lhe causar alguma estranheza, a personagem não tem tempo sequer para a manifestar. Descendo pela chaminé, uma nuvem de pássaros invade a sala, cercando e atacando com violência todos os seres humanos que se encontram lá.
Depois do ataque, a dona da casa tenta devolver a ordem à habitação, recolhendo com muito cuidado todos os fragmentos das chávenas, um a um.

No dia seguinte, a mesma personagem tem de visitar um vizinho. Como ninguém lhe responde quando bate à porta, decide avançar. Antes de percorrer um corredor longo e sombrio para encontrar aquele que procurava morto e de olhos vazados por pássaros, descobre o primeiro índice da desordem em que os pássaros deixaram a casa na cozinha, logo à entrada.


No conto de Daphne du Maurier, a visão das chávenas e a arrumação da cozinha ajudam o protagonista a acalmar-se depois do combate nocturno com os pássaros que tinham invadido o quarto dos filhos The sight of the kitchen reassured him. The cups and saucers, neatly stacked upon the dresser, the table and chairs, his wife’s roll of knitting on her basket chair, the children’s toys in a corner cupboard).
Tanto no texto como no filme, as chávenas funcionam como elemento associado ao humano, e os pássaros como elemento que introduz o caos, revelando a ausência de racionalidade e de sentido no universo.
Um dos passos mais inesquecíveis do conto tem a ver com o primeiro confronto do protagonista com esta força inumana incompreensível e incomensurável, ao ponto de diluir as coordenadas espácio-temporais:


«How long he fought with them in the darkness he could not tell, but at last the beating of the wings about him lessened and then withdrew, and through the density of the blanket he was aware of light. He waited, listened; there was no sound except the fretful crying of one of the children from the bedroom beyond. The fluttering, the whirring of the wings had ceased.»

Há qualquer coisa neste passo da luta entre Jacob e o Anjo.

quinta-feira, 8 de maio de 2008

O prazer, essa luta

Struggle for Pleasure é o título de uma faixa da banda sonora do filme Belly of an Architect, de Peter Greenaway. Como se não bastasse ter mais bandas sonoras de filmes de Peter Greenaway no computador do que seria saudável, passo a vida a ouvi-las em repeat. Esta manhã, há que reconhecê-lo, tem sido particularmente crítica.
Já nem me lembro da última vez em que vi um filme de Peter Greenaway numa sala de cinema, embora os filmes deste realizador sejam feitos a pensar num écran de cinema e não de televisão. Parece mentira, mas a partir de hoje, vai mesmo ser possível ver numa sala de cinema portuguesa o filme Nightwatching – A Ronda da Noite, inspirado pelo famoso quadro de Rembrandt.
É aproveitar, que não acontece todos os dias.
(Em Lisboa, no Alvaláxia e no Saldanha Residence.)

quarta-feira, 7 de maio de 2008

Mas não há como ter um jardim

Numa leitura rápida da lista das melhores frases de encerramento de romances proposta pela American Book Review (e recordada aqui), dou por mim a gostar mais de algumas escolhas referentes a livros que ainda não li, todas elas em tom menor e autodepreciativo:

22. YOU HAVE FALLEN INTO ART —RETURN TO LIFE –William H. Gass, Willie Masters’ Lonesome Wife (1968) [Esta é a minha preferida.];

31. Now everybody— –Thomas Pynchon, Gravity’s Rainbow (1973);

45. Are there any questions? –Margaret Atwood, The Handmaid’s Tale (1986);

51. So I mean listen I got this neat idea hey, you listening? Hey? You listening…? –William Gaddis, J R (1975);

57. "All that is very well," answered Candide, "but let us cultivate our garden." –Voltaire, Candide (1759; trans. Robert M. Adams).

Num destes dias vi citadas algures as últimas palavras de The Gathering, de Anne Enright, romance vencedor do Booker 2006, e também gostei muito. Não deixa de ser curioso notar como se articula com o fim do romance de William H. Gass:

"[…] because you are up so high, in those things and there is such a long way to fall. Then again, I have been falling for months. I have been falling into my own life, for months. And I am about to hit it now."

terça-feira, 6 de maio de 2008

Animais com gatos


segunda-feira, 5 de maio de 2008

Animais pouco reais

Houve um tempo em que acreditámos ser possível viver sem nunca ter os pés assentes no chão. O próprio Lineu, pai da taxonomia moderna, deixou um sinal dessa percepção.
A primeira vez que um europeu viu uma ave-do-paraíso foi em África, no início do séc. XVI, por intermédio de um comerciante dessas paragens. As aves-do-paraíso tornaram-se famosas porque os povos africanos as usavam como moeda de troca em transacções comerciais com os navegadores que frequentavam essas rotas em busca de especiarias.
Apesar da magnífica plumagem que os machos da espécie ainda hoje ostentam, os comerciantes africanos de então, pensando que os poderiam tornar ainda mais belos e valiosos aos olhos europeus, cortavam as patas a todos os exemplares que disponibilizavam. Foi assim que entre os europeus destes tempos se passou a acreditar que estes pássaros deveriam ser próximos da divindade, talvez até seus intermediários, pois, não tendo patas, não poderiam pousar na terra e fazer parte dela.
Muitos séculos passaram até um europeu conseguir observar um exemplar vivo e intacto desta espécie tão tímida e difícil de localizar. A designação Paradisea apoda foi-lhe atribuída por Lineu apenas a partir dos exemplares conhecidos através destes intermediários.
Apoda significa «sem pés». Mesmo Lineu terá acreditado na possibilidade de estas aves serem seres exclusivamente do ar. Hoje em dia, porém, ao contrário de Lineu, nós não só já não acreditamos ser possível viver sem nunca ter os pés assentes no chão, como partimos quase sempre do princípio de que, se nos oferecem coisas belas, é bastante provável que lhes tenham previamente mutilado os membros inferiores, de modo a retirar-lhes as pernas para andar.

 

domingo, 4 de maio de 2008

Jogos de fim-de-semana: quem é o autor?

Night is generally my time for walking. In the summer I often leave home early in the morning, and roam about fields and lanes all day, or even escape for days or weeks together; but, saving in the country, I seldom go out until after dark, though, Heaven be thanked, I love its light and feel the cheerfulness it sheds upon the earth, as much as any creature living.
I have fallen insensibly into this habit, both because it favours my infirmity and because it affords me greater opportunity of speculating on the characters and occupations of those who fill the streets. The glare and hurry of broad noon are not adapted to idle pursuits like mine; a glimpse of passing faces caught by the light of a street-lamp or a shop window is often better for my purpose than their full revelation in the daylight; and, if I must add the truth, night is kinder in this respect than day, which too often destroys an air-built castle at the moment of its completion, without the least ceremony or remorse.

Se não conhecesse bem o livro de que estes parágrafos foram retirados, a referência às visões do caminhante solitário que narra, avançando pela noite à laia de terapia, far-me-ia pensar em Sebald, mais especificamente em Austerlitz.
Erraria no autor por cerca de dois séculos.
É com estes parágrafos que abre o primeiro capítulo do magnífico Old Curiosity Shop, que Charles Dickens foi escrevendo e publicando entre 1840 e 1841.
Segundo Peter Ackroyd, o próprio Dickens tinha por hábito fazer longas caminhadas à noite, sobretudo quando estava a escrever a romances. Era assim que desenvolvia as personagens e a intriga, alcançando um cansaço capaz de lhe quebrar resistências mentais e físicas e de desencadear uma espécie de pacificação que lhe permitiria depois não só a escrita mas também algum merecido descanso.
Para os incautos que também pensem em ler Dickens: o grande problema é conseguirmos interessar-nos por qualquer outro autor de ficção enquanto houver romances de Dickens para ler.
Falo por mim: li nos últimos meses cinco romances do autor. Parece-me que não vou ficar por aqui.

sábado, 3 de maio de 2008

Hoje


Caravana é um livro do Rui Amaral e uma edição Angelus Novus.
Be there.

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