«Também no alpendre que dava para o jardim me parecia ter sido eu, ou alguém como eu, que há imenso tempo tratava de tudo. Os cestos de vime com a lenha miúda dos ramos mais pequenos para atiçar o fogo, as pedras polidas brancas e cinzentas claras, as conchas e outros achados da praia num conjunto silencioso sobre a cómoda diante da parede azul clara, os sacos almofadados e caixas de cartão empilhados a um canto, junto à porta da despensa para serem reutilizados, tudo isso me sugeria uma natureza morta feita por esta minha mão tão propensa a guardar coisas sem valor. Dando uma espreitadela à despensa, que tinha para mim uma atracção especial e em cujas prateleiras em grande parte vazias penavam sobretudo frascos de conserva e umas dúzias de maçãs vermelhas e douradas, muito pequeninas, reluziam como as da parábola bíblica no parapeito da janela que um teixo lá fora escurecia, tive a ideia totalmente irracional de que estas coisas, a lenha miúda, as caixas de cartão, as frutas de conserva, as conchas e o barulho no seu interior me tivessem sobrevivido e Michael me mostrasse uma casa onde eu já tinha morado há muito tempo.»
De Os Anéis de Saturno, trad. Telma Costa, Teorema, pp. 178-180
De Os Anéis de Saturno, trad. Telma Costa, Teorema, pp. 178-180