Neste número escrevi sobre Girls e o livro Not That Kind of Girl, de Lena Dunham. (Saudar a percepção infelizmente revolucionária de que afinal as mulheres, mesmo na casa dos vinte, conseguem pensar pela própria cabeça e não se preocupam só com a aparência e com os namorados umas das outras.)
Lena Dunham. 2014. Not
That Kind of Girl: A Young Woman Tells You What She’s ‘Learned’. Londres:
Fourth Estate.
Girls. Estreou na HBO em 2012. Criadora: Lena Dunham. Argumentos:
Lena Dunham, Sarah Heyward, Deborah Schoeneman, Jennifer Konner, Judd Apatow,
Bruce Eric Kaplan e outros.
Nos
últimos tempos temos assistido à ascensão do ensaio pessoal ou autobiográfico
no contexto americano. Textos que anteriormente seriam trabalhados e
apresentados como ficção ou narrativa de cariz ensaístico ostentam agora o
rótulo de não-ficção, sendo publicados em volume autónomo.
Esta
situação traz vantagens e desvantagens. Do lado das vantagens, passamos a ter
acesso a perspectivas singulares que encontram a sua voz neste formato. Estou a
pensar, por exemplo, nos livros de Rebecca Solnit. Solnit escreve ensaios em
que conseguimos identificar um ponto de vista que relaciona vários elementos,
residindo neste trabalho de pensamento a marca distintiva e ao mesmo tempo o
apelo universal destes textos. Por outro lado, a maior desvantagem do formato é
a facilidade com que se produzem textos circunstanciais, como se bastasse dizer
umas coisas ou contar um episódio biográfico para apresentar um texto merecedor
de atenção. Nestes casos, falta-nos tanto reflexão conceptual como trabalho
sobre a linguagem.
O
livro Not That Kind of Girl, um
compilação de ensaios pessoais da argumentista, actriz e realizadora Lena
Dunham, infelizmente pertence ao segundo caso.
Enquanto
celebridade, Lena Dunham é uma figura interessantíssima. Dunham e a série Girls, por si protagonizada e escrita em
colaboração com uma equipa de argumentistas,
adquiriram notoriedade devido à liberdade que demonstram relativamente ao que
as convenções ditam que uma mulher seja: uma criatura afável e meiga que tem
como maiores preocupações, um, a aparência e, dois, as relações sentimentais.
De acordo com esta perspectiva, nenhuma mulher jovem deve interessar-se por
mais alguma coisa além de manter o namorado e de parecer bonita, simpática,
disponível e compreensiva.
Uma
das características mais distintivas da série Girls é o modo como as actrizes, mesmo uma actriz tão
convencionalmente bonita como Allison Williams (Marnie), não evitam expressões
sérias ainda que com isso deixem de parecer tão agradavelmente desmioladas e
desligadas de qualquer dificuldade existencial importante como a maior parte
das mulheres jovens ficcionais que aparecem na televisão.
Dunham,
em particular, tornou-se alvo de aversão porque, em contraste com a maior parte
dos actores e actrizes que aparecem na televisão e no cinema americanos, tem
quilos a mais, exibe um guarda-roupa que raramente a favorece e – pecado
capital – não parece suficientemente preocupada com isso. Tanto Hannah Horvath,
a personagem que a actriz representa em Girls,
como a própria Dunham ousam ter outros interesses na vida além da aparência e
dos namorados. Preocupam-se com problemas relacionados com questões de
sobrevivência, trabalho, relações de amizade, perceber quem são e o que querem,
pensar pela própria cabeça e assumir a responsabilidade pelos próprios erros e
pelas próprias opções. O mesmo é verdadeiro sobre as outras protagonistas de Girls: há mais dimensões na vida destas
personagens do que costumava acontecer na televisão. Talvez seja a primeira
vez, por exemplo, que uma série tem como protagonista uma rapariga que lida com
um distúrbio obsessivo-compulsivo e mostra alguns sintomas e dificuldades relacionados
com este problema.
Uma
das características que mais suscitam a indignação dos detractores de Girls (mulheres e homens) é a alegada
«falta de empatia» das personagens: nem sempre estas personagens têm interesse
ou paciência para os problemas umas das outras. Parece escandaloso a estes
detractores que as mulheres às vezes tenham mais que fazer e mais que pensar do
que falar sobre os namorados umas das outras. Esta nova percepção das figuras
femininas é muito mais surpreendente e muito mais importante do que a
desenvoltura das cenas de sexo da série.
Ainda
que Girls seja uma série mais crua do
que O Sexo e a Cidade, a primeira não
teria sido possível sem a segunda. As protagonistas de Girls são menos glamourosas e debatem-se com problemas que podem assumir
consequências mais graves. A verdade, contudo, é que já em O Sexo e a Cidade encontrávamos mulheres associadas a opções menos
convencionais, tentando perceber quem eram e o que queriam por si mesmas. Sob o
brilho quase ofuscante das roupas e dos sapatos, se prestássemos atenção,
víamos os egoísmos, as infidelidades, as mentiras, os ciúmes, as invejas, os
erros e as desavenças das personagens – não só mulheres superficialmente
agradáveis. O Sexo e a Cidade era uma
série mais suave e divertida porque as actrizes estavam sempre bem vestidas e a
tentar sorrir, parecendo não ter grandes interesses além das relações
sentimentais. Girls é uma série mais
livre e mais honesta do que O Sexo e a
Cidade porque de vez em quando dispensa as roupagens vistosas e amplia o
contexto existencial das protagonistas.
Na introdução de Not That Kind of Girl, Lena Dunham
sublinha a necessidade de as mulheres assumirem os seus interesses e contarem a
própria história: «There is nothing gutsier to me than a person announcing that
their story is one that deserves to be told, especially if that person is a
woman […] there are still so many forces conspiring to tell women that our
concerns are petty, our opinions aren’t needed, that we lack the gravitas
necessary for our stories to matter» Segundo Dunham, esta atitude não é
opcional: «I want to tell my stories and, more than that, I have to in order to stay sane».
Talvez
o modelo escolhido por Dunham – o livro de autoajuda Having It All, de Helen Gurley Brown (1982), encontrado por acaso
pela autora numa loja de coisas usadas – não tenha, contudo, sido o mais
adequado. Ainda que Dunham teça alguns comentários irónicos relativamente a
este volume, em certos capítulos adopta o tom didactico-moralizante dos maus
livros de autoajuda. O próprio subtítulo do livro de Dunham – A Young Woman Tells You What She’s ‘Learned’
– sugere que este contém lições a transmitir.
Pelo
contrário, a série Girls distingue-se
por mostrar personagens à procura do próprio caminho, sem recorrerem a modelos
prévios de comportamento. Aliás, um dos diálogos mais emblemáticos da série (no
segundo episódio da primeira temporada) gira em torno de uma discussão em que
se recusa os conselhos de um livro de autoajuda – intitulado Listen, Ladies: A Tough Approach to the Tough
Game of Love – sobre as relações entre homens e mulheres. A discussão
termina quando a personagem Jessa (Jemima Kirke) diz que não precisa que lhe
ensinem a viver.
Nos
capítulos menos pedagógicos de Not That
Kind of Girl, encontramos desde narrações de episódios marcantes na vida de
Dunham (sobre vertentes sexuais e afectivas, relações com terapeuta, relações
familiares), listas insuficientemente engraçadas («18 unlikely things I’ve said
flirtatiously», «15 Things I’ve learned from my mother», «My top ten health
concerns», etc.), excertos de um diário de dietas, a emails reais ou
imaginários. Apesar de os textos terem sido especificamente escritos para este
volume, carecem de ligação entre si. Falta-nos uma perspectiva forte que de
algum modo resgate estes capítulos da banalidade a que se condenam.
É
verdade que estamos habituados a ver representações incompletas ou falseadas de
mulheres. É verdade que as mulheres são constantemente incentivadas a
secundarizar os próprios interesses e a fingir que se enquadram nos
estereótipos. É verdade que habitualmente a opinião das mulheres não é tão
valorizada como a opinião dos homens. É importante que as mulheres tenham a
oportunidade de assumir, desenvolver e defender os próprios interesses. Isto,
por si só, não é, porém, garantia de resultados interessantes.
Lena
Dunham criou uma série marcante, que faz História televisiva, e produziu um
livro totalmente irrelevante. Not That
Kind of Girl não é irrelevante por abordar os interesses de uma mulher
jovem, mas sim por ter sido mal pensado e pouco trabalhado. No que diz respeito
à qualidade, o género do autor não é determinante.