João
Bénard da Costa. 2014. Crónicas: Imagens
Proféticas e Outras. 3.º volume. Lisboa: Documenta.
Publicado em 2014, o terceiro volume
de Crónicas: Imagens Proféticas e Outras,
de João Bénard da Costa (1935-2009), reúne textos que saíram na imprensa em
2006, complementando a série iniciada com a antologia de textos de 2002-2003
(primeiro volume) e continuada com textos de 2004-2005 (2.º volume). Em relação
aos outros dois volumes de crónicas, há a assinalar em primeiro lugar uma
revisão de texto mais cuidada. Pela negativa, no entanto, verifica-se a
ausência incompreensível de um índice dos textos, ainda que haja um índice
remissivo que demonstra a diversidade de interesses e referências do autor.
É natural associarmos Bénard da
Costa à cinefilia. Não só fez parte da direcção da Cinemateca, enquanto
subdirector entre 1980 e 1991 e como director até 2009, como desenvolveu
actividades culturais relacionadas. Muitos e belos são os textos que Bénard da
Costa escreveu sobre cinema. Nestes volumes de crónicas, contudo, os textos
mais interessantes não são necessariamente sobre cinema – ou não são só sobre
cinema. Apesar de publicar crónicas em jornais, Bénard da Costa não se deixa
seduzir pelos encantos efémeros da actualidade, preferindo antes tópicos que
lhe parecem essenciais, ainda que pouco abordados por outros no mesmo meio.
Neste terceiro volume encontramos crónicas sobre Cristina Campo, Mozart, Manoel
de Oliveira, Richard Strauss, Richard Fleischer, Paulo Rocha, Sophia de Mello
Breyner, Alida Valli, Tchekov, Bento XVI, John Ford, Elisabeth Schwarzkopf, a
Arrábida e Tiziano, entre outros.
Os
interesses de Bénard da Costa vão do erudito (pintura, música clássica,
clássicos da literatura), ao concreto e pessoal (memórias da família, da vida
em Lisboa ou das férias na Arrábida, descritas ao pormenor). O que mais
surpreende e comove o leitor nestas crónicas é um conjunto de características
difíceis de encontrar em alguém que viva nos tempos tão virtuais que vivemos.
Entre estas características, temos não só o empenhamento em estar presente na
própria vida, percorrendo os lugares, encontrando-se com as pessoas de que
gosta, observando as obras de arte no espaço em que estão expostas, mas também
a vontade de partilhar interesses. O empenhamento em viver e o desejo de
partilha de interesses reflecte-se no tom de conversa e de narração destes textos,
pontuado, quando menos se espera, por um sentido de humor ligeiramente
autodepreciativo: «Parei um bocadinho, para bater na madeira, que ‘presunção de
salvação sem merecimento’ é pecado contra o Espírito e nunca devemos presumir
de mais./Mas encandeio com uma dessas histórias dos meus pesadelos e vejam se
não tenho razão para eles.» (p. 231). Outro dos traços distintivos destas
crónicas relaciona-se com a linguagem de Bénard da Costa: palavras e
construções de outros tempos mas que se revelam imprescindíveis pela sua
expressividade, não se destacando portanto como arcaísmos, mas sim como
reactualizações e revitalização de expressões caídas em desuso.
Além
da generosidade do tom, o mais aliciante nestas crónicas reside na facilidade
com que Bénard da Costa estabelece relações entre elementos diferentes de um
modo em que uns ajudam a esclarecer o valor imaginativo dos outros. Entre os
textos mais interessantes deste volume destaque, por exemplo, para «O Medalhão
Reencontrado» (35-39), em que a recordação de infância de uma visita com a avó
a casa de uma senhora misteriosa leva o autor a evocar um medalhão que lhe
passaram para a mão para se entreter, suscitando a seguir a evocação do
primeiro Livro de Pintura que os pais lhe ofereceram e, com este, de Bronzino e
dos retratos de Eleonora de Toledo. Noutro exemplo de recordações que se
sucedem de modo idiossincrático, na crónica «O Gerânio na Janela» (133-137)
convoca-se Dante Gabriel Rossetti em articulação com as figuras de Prosérpina,
Kim Novak, a Carlota Valdés de Vertigo
e Ellen Page no filme Hard Candy.
Outra das crónicas mais sugestivas deste volume é aquela que se intitula «O que
Não Tem Penas» (199-205), em que o conto «The Man Who Liked Dickens»,
juntamente com o filme pouco conhecido em que Nicholas Ray adaptou este texto
de Evelyn Waugh para a televisão (High
Green Wall, 1954), funcionam como ponto de partida para algumas reflexões
sobre os diversos modos de recepção da literatura, culminando numa espécie de
teoria da arte que é uma filosofia de vida: «Felizes os que amam um só autor
[...] até ao fim e passaram esta vida breve sem sair dele.» (p. 201).
Muitos
dos textos mais inspiradores e mais inesperados de Bénard da Costa têm a ver
com o registo das memórias, como se verifica nos casos de «Memórias do Alfredo»
(61-64) ou «No Sexto Aniversário da Minha Morte» (127-131). Entre estes,
salientam-se as crónicas que Bénard da Costa escreveu sobre a Arrábida. Nas
palavras do autor, a Arrábida converte-se num espaço mental encantado que de
algum modo resiste a todas as agressões políticas, ambientais e turísticas, ao
ponto de se tornar difícil associar a Arrábida de Bénard da Costa a qualquer
outra imagem da Arrábida que possamos encontrar ou captar inclusivamente na
própria Arrábida. É possível comprovar isto mesmo no filme Outros Amarão as Coisas que Eu Amei (Manuel Mozos, 2014). Sobrepor
as palavras de Bénard da Costa a imagens da Arrábida gera uma disjunção
estranha. Quem visitar a Arrábida depois de ler as crónicas de Bénard da Costa
ficará ligeiramente desorientado ou perdido, de tal modo a Arrábida de Bénard
da Costa e dos que o leram está associada às memórias do autor.
Entre os textos deste volume
dedicados à Arrábida, realce para «Arrábida, Outra Vez» (227-233), um clássico
de Bénard na Costa na sua construção. Depois de referências à participação do
autor na filmagem de um filme de Manoel de Oliveira, à apresentação de um livro
sobre o Convento da Arrábida, ao fantasma de um monge que assombraria este
edifício, e a um romance de Agustina cuja acção decorre na mesma região, Bénard
da Costa descreve a «Lapa do Médico»: entre fragas e penhascos, um «buraco no
chão, onde mal cabe uma pessoa» e que dá acesso a uma sucessão de galerias. A
seguir, a atmosfera de tom de fadas da aventura perigosa que caracteriza o
relato da visita que um dia fez a este espaço com os dois filhos e um sobrinho
termina com a menção de uma perspectiva diferente do mesmo episódio: «Estava a
passar férias connosco o Nuno de Bragança, que mantinha um diário. Muito mais
tarde, li o que ele tinha escrito referente a esse dia: ‘À tarde, o João, com
estarrecedora inconsciência, enfiou-se numa gruta e arriscou os nervos de três
crianças para o resto da vida.’»
Nesta
crónica sobre a Arrábida é evidente toda a singularidade dos textos de Bénard
da Costa: o tom erudito, um pouco épico, um pouco lírico, quase a tocar a
mitomania, articulado com a citação irónica de um ponto de vista que o
equilibra e torna mais nítido; um conjunto de referências culturais incluídas
não como pose exibicionista, mas porque são essenciais à própria noção de vida
praticada e partilhada pelo autor. É importante descrever Bénard da Costa como
escritor e não só como divulgador e comentador de cinema.