No número dois de Forma de Vida, escrevi sobre Ana Teresa Pereira a propósito do livro O Lago.
Ana
Teresa Pereira. O Lago. Lisboa:
Relógio d’Água, 2011.
Como
explicar porque se gosta dos livros de Ana Teresa Pereira a quem nunca os leu
ou, tendo lido, acha que é uma escritora repetitiva, de recursos narratológicos
pouco complicados, com um português demasiado próximo da língua inglesa?
A
cada novo livro se renova a surpresa de ser preciso tão pouco para convocar um
universo. Não há política, não há digressões de cariz sociológico ou
economicista, não há História, não há jornalismo, não há referências ao
colonialismo, não há realismo mágico, não há monólogo interior em roda livre,
não há futebol. Livres destas perturbações por outros exploradas até à
exaustão, leitores e autora ficam com as personagens e aquilo que é importante
para elas: serem quem são, fazendo o que lhes interessa.
O
que se afirma a propósito do protagonista de O Lago poderia ser dito em relação a outros protagonistas dos
livros de Ana Teresa Pereira: «Tom não tinha muitos amigos. Não dava grande
importância à amizade, à família ou ao amor. […] Quase esquecera o rosto da
mulher com quem estivera casado durante dois anos. E não havia dúvida de que
fizera bem em não ter filhos. Gostava dos livros e dos cães que tinham
partilhado a sua vida; de personagens e de actores.» (p. 26). Não há dispersão
na vida de Tom; há concentração. Para Ana Teresa Pereira, basta reduzir as
coisas ao essencial: arte, personagens/actores, acção. Estas três dimensões são
inseparáveis. Não é possível conceber as personagens desta escritora a não ser
por referência à arte. A arte é não só o espaço em que se movem existencial e
profissionalmente, mas também o espaço de onde vêm. Sem alguns livros, filmes
ou pinturas, estas personagens não seriam quem são.
Habitualmente,
as personagens de Ana Teresa Pereira são artistas, mesmo quando as suas carreiras
não se distinguem pelo sucesso. Em O Lago
destacam-se Tom, um escritor/encenador que foi actor, e Jane, uma actriz que
tinha optado inicialmente por ser bailarina, mas teve de desistir devido a uma
lesão. A segunda é escolhida como protagonista da peça que o primeiro escreveu
e vai encenar. Sobre a peça de Tom não nos é dito muito; o trabalho de
encenação e preparação da actriz é mais importante. A peça vai sendo reescrita
durante os ensaios, a a partir da interacção com os actores. Quando, vendo Jane
a coxear levemente à saída do teatro, Tom se interroga se o coxear pertence à
actriz ou à personagem, torna-se evidente que as fronteiras entre arte e vida
não são importantes.
A
indistinção actor/personagem é clara também na caracterização da figura de Tom,
sempre descrito por referência a actores, personagens, peças de teatro e outros
textos literários. Tom decidiu ser actor depois de ver a peça Death of A Salesman, de Arthur Miller
(1949), aos onze anos. Como grande influência na sua vida, é referida a interpretação
de um actor no filme de Sidney Lumet (1960) que adapta uma peça de Eugene
O’Neill (1939): «A interpretação de Jason Robards em The Iceman Cometh influenciara-o muito. Como actor e como escritor.
Ao longo dos anos revira inúmeras vezes o monólogo final. Robards, um piano,
uma jarra de flores. Era o mais belo poema que conhecia.» (p. 61). Fisicamente,
Tom recorda o actor Gabriel Byrne (p. 18), figura cara a esta escritora.
Sem
arte não haveria Tom, mas é curioso notar que se para esta personagem a
representação e a interpretação são tão importantes como a acção e a criação
(«Mas [só] quando estou a representar sou eu mesmo.», «Não há qualquer
diferença entre escrever e representar.», p. 105), isso acontece porque não se
distinguem destas. As personagens de Ana Teresa Pereira são quem são, fazem o
que fazem, a partir de influências e participações. Criar e viver são sempre
representações e interpretações.
Por
via da participação de umas coisas nas outras se explica também a diluição de
fronteiras que se opera quer entre personagens, quer entre personagens e
autora, quer entre os interesses das personagens e da autora e elas próprias,
quer entre os diferentes livros de Ana Teresa Pereira. Tanto escritora como
protagonista escrevem textos sempre muito parecidos uns com os outros. Livros,
escritora e personagens representam-se e reinterpretam-se a si mesmos.
Nestes
livros, a referência aos mecanismos da criação não se processa por meio de
digressões metaliterárias sobre o tema, mas antes pela aproximação à – ou
dir-se-ia até pela participação na – figura de Deus. Pelo facto de esta figura
ser imanente tanto às personagens como aos espaços em que se movem e à sua vida
de todos os dias, não se trata de uma aproximação propriamente religiosa, mas
existencial. Deus está presente porque tudo é como ele na medida em que cria e
se recria como ele, correspondendo a criação a um modo de expressão. Para Ana
Teresa Pereira, o verbo «criar» tem o sentido mais abrangente possível, devendo
ser relacionado não só com actividades artísticas, mas também articulado com
sentidos do contexto da Natureza: uma planta que dá flores, um pintor a trabalhar numa tela, um actor a
representar, um dia em que neva são equivalentes para Ana Teresa Pereira. Criar
é ser-se o que se é. (Deus terá dito: «Eu sou Aquele que é.») Em O Rosto de Deus, outro romance desta
autora com uma personagem chamada Tom, pode ler-se: «Para mim, os deuses
estavam por todos os lados, nas plantas, nos animais, nos livros, nos desenhos,
nas músicas, nos sonhos. E todos esses deuses eram pequenas partes de Deus, as
flores que eu pintava, o meu cão, as minhas noites de amor com os meus
namorados. Mesmo respirar era Deus, e as manhãs, claro, e as cores, e o
crepúsculo, e o mar.» Em O Lago, a
dada altura fala-se da proximidade entre Tom e Deus (p. 97).
A
preparação da actriz prolonga-se fora do teatro, através da relação entre esta
e o encenador, que se vai desenvolvendo numa casa que este um dia adquirira num
vale «completamente fechado e longe de tudo. Como um lugar sagrado, sozinho,
sem qualquer ligação com o resto do mundo» (p. 73). O trabalho em torno da peça
culmina no fim do livro, quando se consuma totalmente a abolição das fronteiras
entre arte e vida através da conversão ou descoberta de Jane na personagem de
Tom. Este momento coincide com o fim do Inverno. Sem mais nada dentro de si a
não ser as memórias da personagem e uma «missão» a cumprir (a actuação no
teatro), Jane dá um passeio pela neve. Dentro de si, encontra só o conjunto de
memórias baseadas em livros, filmes e quadros de que Tom dotou a personagem, as
quais ao mesmo tempo se confundem com as memórias de Tom, por sua vez tão
semelhantes às memórias de outras personagens de Ana Teresa Pereira: «Memórias. Tinha de encontrar um sentido para
o que estava a acontecer. Algumas imagens soltas. Uma pintura em madeira, uma
madona numa árvore. Um ícone de bronze que alguém punha numa mala antes de
viajar. Uma pequena árvore de fruto. Mas a árvore de fruto estava num quadro.
Um teatro.» (p. 115). Neste momento, Jane é só o que vai fazer: representar.