Neste número, escrevo sobre o romance Hunger, de Knut Hamsun, relacionando-o com vários outros livros cujos protagonistas tentam lidar com a dificuldade de escrever.
Hamsun, Knut. Hunger
(Sverre Lyngstad, trad.). Londres:
Canongate, 2011.
Hunger, de Knut Hamsun, é um livro sobre as
coisas que acontecem quando se tenta escrever. A própria estrutura narrativa parece reflectir as dificuldades desta
actividade. Sem qualquer ligação forte de causa/efeito entre os seus diversos
episódios e acontecimentos, cada secção do romance é construída a partir dos
impulsos inesperados e autodestrutivos do protagonista (nunca nomeado),
terminando sem qualquer resolução do problema fundamental. Em todos os momentos
o protagonista tenta lidar com sua incapacidade para escrever, actividade a que
se dedica em exclusividade e da qual, portanto, depende para sobreviver. Por
não conseguir escrever, fica dependente de pequenos expedientes e raras esmolas
para comer e pagar as dívidas, chegando muitas vezes a situações extremas de
risco físico e mental relacionadas com a fome e a ausência de morada permanente.
Apenas no último capítulo do livro, quando, ao que tudo indica, o protagonista
desiste de tentar ser escritor, para trabalhar num barco, se verifica alguma
progressão. Esta, no entanto, não é totalmente clara.
Só uma
impossibilidade literária – sabermos o que acontece às personagens depois do
fim dos romances de que fazem parte – poderia fixar o sentido deste livro. Depois do fim, o protagonista, um pouco como Rimbaud, pode optar definitivamente por uma
vida sem mais preocupações nem riscos relacionados com a escrita, deixando-a
ficar para trás como um episódio da juventude. Existe, no entanto, a hipótese
de o protagonista encontrar em si o desejo e a capacidade para escrever,
descobrindo-se mais forte depois da experiência negativa radical da sua primeira tentativa.
Contudo,
o final em aberto de Hunger torna-o
resistente à sua associação sem reservas a algumas das tradições literárias que
este livro evoca ou ajuda a definir. Não se pode incluí-lo sem hesitações no
grupo de livros infelizmente estraçalhados por lugares-comuns de má crítica
(Kafka, o Bartleby de Melville, entre outros) e que descreve a escrita como
experiência de marginalidade ou como experiência radical de limites perigosos.
Se o protagonista sobreviver tanto como não-escritor como enquanto escritor,
isso verificar-se-á depois desta experiência dos limites e da marginalidade, e
não por causa dela: o protagonista avança para algum tipo de futuro quando a
deixa para trás.
Se
acreditarmos na possibilidade de o protagonista se tornar escritor, teremos de
incluir Hunger no subgénero dos
livros sobre escritores em formação, como A
Portrait of the Artist as a Young Man, de James Joyce, Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust, A Moveable Feast, de Ernest Hemingway (não-ficção), Martin Eden, de Jack London, Ask The Dust, de John Fante e talvez até
O Livro do Desassossego, de Bernardo
Soares/Fernando Pessoa.
Neste
grupo, talvez o livro mais próximo de Hunger
seja Martin Eden, romance que termina
com o suicídio do protagonista, exausto depois de um período em que escreve com
uma energia e um ritmo quase sobrenaturais, pela capacidade de persistirem
apesar de privações de vária ordem, incluindo fome. Ainda que Martin Eden, ao
contrário do protagonista de Hunger,
consiga escrever, ambos chegam esgotados ao fim da narrativa, o que os conduz à
desistência. Depois de obtido o devido reconhecimento como escritor, Martin
Eden perde a vontade de viver, abre a escotilha do camarote no
barco em que viaja e simplesmente desliza para o mar.
Outro
ponto de contacto interessante entre Hunger
e Martin Eden – e talvez até entre
estes dois livros e a obra de Pessoa –
é, aliás, a profissão de marinheiro. Em Martin Eden, esta profissão funciona como fonte de inspiração para
a actividade de escrever; Martin Eden decide começar a escrever para contar as
experiências que viveu no mar e nos trópicos. Em Hunger, no entanto, a escolha desta profissão é posterior à
tentativa de escrever, sendo vista como ponto indesejável de chegada: o porto e
os barcos que neste aguardam assumem uma presença vagamente ominosa ao longo do
romance, talvez por serem entendidos como meio de transporte para um futuro em
que o protagonista poderá não estar a tentar escrever.
A
relação com Pessoa estabelece-se também pela tendência para a deambulação que
Bernardo Soares partilha com o protagonista de Knut Hamsun. De notar, no
entanto, que enquanto para Bernardo Soares tudo é motivo para escrever, no caso
do protagonista de Knut Hamsun, nada suporta e ajuda a consolidar a escrita.
Ao
contrário do que Paul Auster, autor que escreveu muitas vezes sobre sobre fome
não-metafórica, sugere no posfácio da edição que li, não tenho a certeza de que
em Hunger a fome esteja totalmente
livre de associações metafóricas. Leitores e protagonista confrontam-se com
duas perguntas importantes. Como escrever em vez de não escrever? Porquê
escrever em vez de não escrever? Para a primeira, o protagonista não encontra
uma solução persistente e satisfatória. Dir-se-ia, no entanto, que o título e a
estrutura do romance sugerem uma resposta para a segunda. Podemos encontrar uma
correspondência entre a fome e a vontade de escrever. Tal como a fome, escrever
é um problema que constantemente se tem de resolver. Tal como a fome e como a
vontade de viver, o desejo de escrever nunca chega a uma resolução permanente e
satisfatória (a não ser através da morte), estando exposto a processos de
desgaste e renovação permanentes.
A
fome de Hunger também se distingue da
fome de Ernest Hemingway em A Moveable
Feast (sobretudo na secção «Hunger is Good Discipline»). Neste livro em que
narra os tempos que passou em Paris tentando afirmar-se como escritor,
Hemingway descreve a fome associada à falta de dinheiro como uma espécie de
intensificador da experiência e da percepção. Em Hunger, no entanto, Knut Hamsun concentra-se nos efeitos físicos
(fraqueza, vómitos, doença) e psicológicos ou até psiquiátricos (instabilidade
emocional, comportamentos anti-sociais, enfraquecimento da resistência mental,
desconcentração, interpretações inverosímeis dos acontecimentos) da fome, sem
referência directa a (im)possíveis vantagens artísticas relacionadas com esta
situação. Apesar disso, a experiência da fome e da pobreza que, a dada altura,
levam o protagonista, despojado de quase tudo, a tentar empenhar os últimos
objectos que lhe restam (no limite do dispensável) – os óculos e os botões que arranca do casaco
que enverga – poderá ser descrita como tirocínio quer para a vida prática (no
sentido em que ensina ao protagonista como não deve viver, no caso de esta personagem, no futuro pós-narrativo, optar, como Rimbaud, por uma vida sem
literatura), quer para a vida literária (se preferirmos ver este despojamento
radical como um percurso teleológico com recompensa).