A minha colaboração foi uma recensão do livro As Minhas Lembranças Observam-me, de Tomas Tranströmer.
Tendo
em conta que o autor de uma autobiografia tem acesso privilegiado à consciência
do objecto de escrita, seria de esperar que numa autobiografia houvesse mais
espaço para sentimentos ou apontamentos de carácter subjectivo do que numa
biografia. E, no entanto, muitos biógrafos se deixam tentar por especulações de
cariz psicologista com resultados variáveis, talvez por pensarem que sem isso
não obtêm um retrato completo do biografado, enquanto neste volume de prosa
Tomas Tranströmer (n. 1931), prémio Nobel da literatura em 2011, conta a sua
vida até à adolescência (a última data mencionada é o ano de 1948, teria o
poeta 17 anos) sem grandes preocupações sentimentais e destacando elementos tão
objectivos que, sem o olhar específico que os refere, poderiam ser descritos
como triviais.
O
título do livro – As Minhas Lembranças
Observam-me – é bastante expressivo na sugestão não só da importância da
especificidade do olhar, mas também do movimento de exteriorização de coisas
interiores levado a cabo neste texto. Tranströmer descreve-se a partir do
exterior logo desde o título, ao ponto de desligar de si o que há de mais
subjectivo (as lembranças), para as situar de fora, como simples coisa concreta
entre as outras através das quais se foi definindo a sua vida. Verifica-se
deste modo alguma sabotagem entre os
pólos da dicotomia público/privado. O privado torna-se público através de
coisas partilháveis, como, por exemplo, um professor de liceu entrar na sala de aula com um cogumelo na mão
(«Pousou-o na secretária. Libertador e chocante – tínhamos vislumbrado alguma
coisa da vida pessoal do Målle! Apanhava cogumelos!», p. 61). De modo
semelhante, para falar de um amigo que teve na escola, Tranströmer descreve a
sua família, os seus interesses e as suas colecções (p. 54).
Se
há neste livro referências a sensações ou sentimentos, estas aparecem sempre
subordinadas a elementos concretos e localizados. Por exemplo, no percurso que
o poeta efectuava habitualmente entre casa e liceu, a recordação mais nítida é
0 surpreendente cavalo que todas as manhãs ele encontrava a comer palha de um
saco pendurado ao pescoço no caminho para a escola: «Era um cavalo de tiro
– um cavalo das Ardenas – , grande,
fumegante. Passava por um instante ao alcance do seu odor, e ainda hoje tenho
bem viva a recordação daquele animal paciente e do cheiro que exalava no frio
húmido. Um cheiro que era ao mesmo tempo sufocante e reconfortante.» (p. 54).
Os
lugares pelos quais o poeta vai passando em percursos reais ou imaginários
estabelecem as coordenadas do seu retrato. Lugares como Kungsholmen, de que o
narrador ouviu falar numa conversa entre vizinhos da casa ao lado, para depois
ficar a saber que aí se situava o edifício da polícia (pp. 15-16), ou Eslöv, o
local de onde era uma empregada da família
(pp. 15-16), a propósito do qual Tranströmer comenta: «ainda hoje sinto
qualquer coisa de especial quando passo, de comboio, na estação de Eslöv. Mas
nunca desembarquei nesse lugar mágico.» Do mesmo modo, na relação especial
entre o poeta e o Museu de História Natural, uma das recordações mais nítidas é
das caminhadas para o edifício «sempre com vento, sempre com o nariz a pingar e
os olhos a lacrimejar» (p. 23).
Com
a importância do espaço neste relato articula-se directamente o interesse do
autor por geografia, reflectido nas suas leituras e actividades da infância e
adolescência, designadamente o Verão que dedica a expedições imaginárias em
África usando um mapa para se orientar (p. 49).
Um dos lugares mais importantes na
geografia do jovem Tranströmer era sem dúvida a biblioteca de um centro cívico
em que também se situava uma piscina. A importância deste local é descrita de
duas maneiras. Por um lado, através das aventuras e desventuras do jovem poeta
entre as secções de adultos e de crianças e das estratégias usadas com o
objectivo de requisitar os livros desejados, geralmente relacionados com
zoologia e geografia, e de superar estas fronteiras guardadas ferozmente pelas
funcionárias. Por outro lado, a associação entre biblioteca e piscina, além de
distinguir esta biblioteca (por oposição à biblioteca central de Sveavägen,
«onde o ambiente era mais sombrio e o ar era parado, sem vapores de cloro, sem
o eco das vozes. O cheiro dos livros também era diferente e fazia dores de
cabeça.», p. 48), recria de forma sensorial extremamente sugestiva a riqueza de
evocações contida neste espaço: «Logo à
entrada se sentiam os vapores da piscina e o cheiro a cloro que vinha dos
respiradouros, e ouvia-se o eco das vozes lá dentro. Todas as instalações de
banhos têm uma acústica magnífica.» (p. 46). Baseando-se em elementos
olfactivos e sonoros, a descrição é objectiva e concreta. A proximidade entre
biblioteca e piscina parece, no entanto, dar vozes aos livros e intensificar o
seu odor através do cloro.
O
interesse do escritor por museus e por colecções relaciona-se com esta
preferência pelo concreto e pela geografia. Não só a identidade dos museus e
das colecções depende do ordenamento de um espaço, como tanto nos museus como
nas colecções os objectos são sempre representantes de alguma coisa (de uma
experiência, de uma espécie animal, botânica ou mineral, de um período
artístico, de um autor, de uma civilização), contendo em si um conjunto de
evocações e ecos comparáveis aos das bibliotecas e piscinas povoadas. Quando
fala da sua colecção de insectos, o autor sublinha esta riqueza evocativa: «Tinha
começado a fazer uma colecção. As minhas colecções cabiam num armário lá em
casa. Mas dentro da minha cabeça crescia um museu imenso e entre este museu de
fantasia e o museu verdadeiro […] estabeleceu-se uma relação.» (pp. 22-23). O
museu verdadeiro é indissociável do museu de fantasia, tal como os objectos das
colecções e dos museus são inseparáveis daquilo em que fazem pensar.
Da
entrada do Museu de História Natural, Tranströmer recorda os dois esqueletos de elefante tanto
como guardiões da vida exposta nesse espaço como enquanto mensageiros da morte
e dos episódios de angústia e de pânico vividos pelo poeta no Inverno em que
tinha 15 anos («[t]alvez a minha experiência mais importante», p. 69). Torna-se
claro que as próprias colecções de insectos do autor podem ser vistas como
intimações de mortalidade: «Desse mundo, eu capturava a mais ínfima fracção de
uma ínfima fracção, que depois pregava nas caixas que ainda hoje guardo. Um
minimuseu escondido, de que raramente me lembro. Mas eles lá estão, os insectos.
Como que à espera da sua hora.» (pp. 25-26).
Quando
Tranströmer tem à volta de 15 anos, os interesses artísticos ocupam o espaço da
entomologia e das colecções, de algum modo funcionando como prolongamento
natural destes. Com a consciência de que tanto a vida como a morte se inscrevem
de modo inescapável no concreto (dos museus, das colecções, da geografia, da
vida) se articulará a actividade poética do autor nos anos que este volume já
não abrange.