«I too am not a bit tamed, I too am untranslatable» (Walt Whitman) | setadespedida@yahoo.co.uk

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Rebecca Solnit



Aproveitando a saída em português do livro The Faraway Nearby (publicado pela Quetzal com o título Esta Distante Proximidade) para homenagear modestamente a ensaísta Rebecca Solnit, escrevi sobre um livro mais antigo, mas de que gosto muito, intitulado A Field Guide to Getting Lost.

Para um excelente ensaio de Rebecca Solnit, publicado no número de Outubro deste ano da Harper’s Magazine: The Mother of All Questions.
(Nota: o texto pode ser lido na íntegra, mas tem de se clicar página por página.)

 
Rebecca Solnit. 2006. A Field Guide to Getting Lost. Edimburgo e Londres: Canongate.


 

Na primeira secção de A Field Guide to Getting Lost, Rebecca Solnit revela que o ponto de partida deste livro foi uma citação descontextualizada do diálogo Ménon, de Platão, que uma aluna trouxe um dia para um workshop. Nesta citação perguntava-se: «How will you go about finding that thing the nature of which is totally unknown to you?» (p. 4). Como procurar o que desconhecemos totalmente ao ponto de não dispormos sequer dos meios para o identificar? De acordo com Rebecca Solnit, é importante responder a esta pergunta porque aquilo que desconhecemos totalmente pode ser precisamente o que mais falta faz descobrir. Na estação em que a Quetzal publica em português o livro The Faraway Nearby (ver recensão de Maria Rita Furtado nesta secção), recuperamos um livro anterior de Rebecca Solnit.

 
O que Solnit diz sobre os tópicos que aborda em A Field Guide to Getting Lost (do azul nas telas de alguns pintores do Renascimento, a Yves Klein, passando por Vertigo, de Hitchcok, entre mais histórias de pessoas perdidas e reencontradas) parece menos importante do que aquilo que a partir destes assuntos sugere. Este livro progride numa corrente subterrânea de reflexões que, através de repetições, formulações deceptivamente light e reformulações ou recuperações discretas, vão construindo em acto, de modo indirecto e musical, um argumento acerca da própria actividade de escrever um ensaio.
 
Para descobrir o que faz mais falta, Solnit propõe que, tal como ela, aceitemos ou encontrarmo-nos depois de nos termos perdido ou encontrarmos o que foi perdido. Ainda que nunca referindo directamente o poema «One Art» (salvo minha distracção), A Field Guide to Getting Lost parece companheiro do famoso texto em que Elizabeth Bishop recomenda ironicamente: «Lose something every day.» Enquanto o poema de Bishop corresponde a uma prestidigitação irónica para lidar com a dor da perda, aliada a uma incitação apócrifa à vida minimalista, o livro de Solnit, ainda que partindo da mesma constatação de que a natureza das coisas e das pessoas é perder-se («It’s in the nature of things to be lost and not otherwise», p. 185), tenta explorar as possibilidades quer da perda quer da situação de estar perdido.

 



Estar perdido, em A Field Guide to Getting Lost, assume duas acepções principais (pp. 22-33). 1) Uma pessoa pode perder-se num contexto desconhecido, tendo necessidade de prestar atenção a tudo para obter algum tipo de conhecimento e de orientação, como no caso dos navegadores que acharam terras ainda não cartografadas, com plantas, animais, pessoas,  objectos e até conceitos para os quais não tinham sequer vocabulário a que recorrer para organizar as novas percepções. 2) Uma história, um objecto, um percurso, uma memória podem desaparecer, deixando as pessoas (a que pertenciam ou não) num contexto em que tudo é familiar menos a ausência do que se perdeu.

 
Porque se relaciona com a memória, o segundo tipo de ausência deve ser descrito através de graus. É possível recordar o que se perdeu durante algum tempo com maior ou menor pesar. O que se perdeu pode igualmente ser esquecido aos poucos, até se desvanecer. Mesmo quando tudo indica que foi totalmente esquecido pelo proprietário, pelos intervenientes, pelas testemunhas, mesmo que até estas tenham desaparecido, há a possibilidade de (o objecto, a história, o percurso) reaparecer. A este caso pertencem situações em que são redescobertos elementos do passado de uma paisagem ou de um contexto: histórias sobre acontecimentos que ali tiveram lugar ou funções desempenhadas nesse espaço, cemitérios esquecidos, rios subterrâneos, pessoas que ali passaram ou moraram.

 
Perder-se, perder coisas, encontrar coisas perdidas, esquecidas ou subterrâneas, na medida em que correspondem a situações que convocam a maior atenção, funcionam como descrições da escrita de ensaio. À semelhança das pessoas que perderam coisas, também os ensaístas se encontram frequentemente num contexto familiar em que se destaca uma ausência por vezes dificilmente perceptível, mas que é preciso explorar. À semelhança das pessoas que se perderam, os ensaístas dão por si num território desconhecido em que se vêem obrigados a adquirir ou forjar novo vocabulário ou novas ferramentas para se poderem orientar.

 
Como Solnit sugere noutro dos seus livros (Wanderlust: A History of Walking) quando se refere à sua própria motivação para escrever, redige-se um ensaio para abrir um caminho novo através da imaginação ou chamar a atenção para elementos impensados num percurso supostamente  familiar.

 
Num dos passos mais importantes de A Field Guide to Getting Lost, Solnit descreve a escrita de ensaio ou de não-ficção por oposição à escrita de ficção:  «Nonfiction seems to me photographic; it poses the same challenge of finding form and pattern in the stuff already out there and the same ethical obligations to the subject. Fiction like painting lets you start with a blank canvas […] (In essays, ideas are the protagonists, and they often develop much like characters down to the surprise denouement.)» (p. 144). Enquanto o autor de ficção pode começar do nada se assim o desejar, fabricando personagens, contextos e situações, cabe ao autor de não-ficção ou ao ensaísta, à semelhança do que se verifica na actividade de um fotógrafo, encontrar formas e padrões no que existe, desenvolvendo ideias como o autor de ficção desenvolve personagens. As ideias são as personagens do ensaísta.

 
A propósito da beleza, Solnit observa o seguinte: «Beauty is often spoken of as though it only stirs lust or admiration, but the most beautiful people are so in a way that makes them look like destiny or fate or meaning, the heroes of a remarkable story. Desire for them is in part a desire for a noble destiny, and beauty can seem like a door to meaning as well as to pleasure.» (p. 96). Também este passo sobre a beleza se aplica à arte do ensaio. Assim como a beleza de alguém pode ser associada à sua capacidade de ser protagonista do próprio destino, escrever um ensaio, uma actividade de captação da beleza segundo Solnit, corresponde a identificar os protagonistas de determinado assunto, revelando o destino ou as relações de significado perdidas dos assuntos estudados. Cabe-nos a nós, enquanto autores ou leitores de ensaios, decidirmos que assuntos se tornarão os protagonistas da nossa vida.

 
É uma questão de movimento e de atenção, dois dos tópicos mais importantes nos livros da ensaísta e activista Rebecca Solnit. Como se verifica noutros livros desta autora, por vezes os protagonistas que com mais clareza ajudam a explicar determinada questão são inesperados e é preciso muita atenção para não os deixar escapar. Neste e noutros livros, o mais valioso do trabalho de Solnit reside na atenção ao que outros ignoram ou deixam passar.
 






 

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