Aproveitando a saída
em português do livro The Faraway Nearby (publicado pela Quetzal com o título
Esta Distante Proximidade) para homenagear modestamente a ensaísta Rebecca Solnit, escrevi sobre um livro mais antigo, mas de que gosto muito, intitulado A Field Guide to Getting
Lost.
Para um excelente
ensaio de Rebecca Solnit, publicado no número de Outubro deste ano da Harper’s
Magazine: The Mother of All Questions.
(Nota: o
texto pode ser lido na íntegra, mas tem de se clicar página por página.)
Na
primeira secção de A Field Guide to
Getting Lost, Rebecca Solnit revela que o ponto de partida deste livro foi
uma citação descontextualizada do diálogo Ménon,
de Platão, que uma aluna trouxe um dia para um workshop. Nesta
citação perguntava-se: «How will you go about finding that thing the nature of
which is totally unknown to you?» (p.
4). Como procurar o que desconhecemos totalmente ao ponto de não dispormos
sequer dos meios para o identificar? De acordo com Rebecca Solnit, é importante
responder a esta pergunta porque aquilo que desconhecemos totalmente pode ser
precisamente o que mais falta faz descobrir. Na estação em que a Quetzal
publica em português o livro The Faraway
Nearby (ver recensão de Maria Rita Furtado nesta secção), recuperamos um
livro anterior de Rebecca Solnit.
O que
Solnit diz sobre os tópicos que aborda em A
Field Guide to Getting Lost (do azul nas telas de alguns pintores do
Renascimento, a Yves Klein, passando por Vertigo,
de Hitchcok, entre mais histórias de pessoas perdidas e reencontradas) parece
menos importante do que aquilo que a partir destes assuntos sugere. Este livro
progride numa corrente subterrânea de reflexões que, através de repetições,
formulações deceptivamente light e reformulações ou recuperações discretas, vão
construindo em acto, de modo indirecto e musical, um argumento acerca da
própria actividade de escrever um ensaio.
Para
descobrir o que faz mais falta, Solnit propõe que, tal como ela, aceitemos ou
encontrarmo-nos depois de nos termos perdido ou encontrarmos o que foi perdido.
Ainda que nunca referindo directamente o poema «One Art» (salvo minha
distracção), A Field Guide to Getting
Lost parece companheiro do famoso texto em que Elizabeth Bishop recomenda
ironicamente: «Lose something every day.» Enquanto o poema de Bishop
corresponde a uma prestidigitação irónica para lidar com a dor da perda, aliada
a uma incitação apócrifa à vida minimalista, o livro de Solnit, ainda que
partindo da mesma constatação de que a natureza das coisas e das pessoas é
perder-se («It’s in the nature of things to be lost and not otherwise», p.
185), tenta explorar as possibilidades quer da perda quer da situação de estar
perdido.
Estar
perdido, em A Field Guide to Getting Lost,
assume duas acepções principais (pp. 22-33). 1) Uma pessoa pode perder-se num
contexto desconhecido, tendo necessidade de prestar atenção a tudo para obter
algum tipo de conhecimento e de orientação, como no caso dos navegadores que
acharam terras ainda não cartografadas, com plantas, animais, pessoas, objectos e até conceitos para os quais não
tinham sequer vocabulário a que recorrer para organizar as novas percepções. 2)
Uma história, um objecto, um percurso, uma memória podem desaparecer, deixando
as pessoas (a que pertenciam ou não) num contexto em que tudo é familiar menos
a ausência do que se perdeu.
Porque se
relaciona com a memória, o segundo tipo de ausência deve ser descrito através
de graus. É possível recordar o que se perdeu durante algum tempo com maior ou
menor pesar. O que se perdeu pode igualmente ser esquecido aos poucos, até se
desvanecer. Mesmo quando tudo indica que foi totalmente esquecido pelo proprietário,
pelos intervenientes, pelas testemunhas, mesmo que até estas tenham
desaparecido, há a possibilidade de (o objecto, a história, o percurso)
reaparecer. A este caso pertencem situações em que são redescobertos elementos
do passado de uma paisagem ou de um contexto: histórias sobre acontecimentos
que ali tiveram lugar ou funções desempenhadas nesse espaço, cemitérios
esquecidos, rios subterrâneos, pessoas que ali passaram ou moraram.
Perder-se,
perder coisas, encontrar coisas perdidas, esquecidas ou subterrâneas, na medida
em que correspondem a situações que convocam a maior atenção, funcionam como
descrições da escrita de ensaio. À semelhança das pessoas que perderam coisas,
também os ensaístas se encontram frequentemente num contexto familiar em que se
destaca uma ausência por vezes dificilmente perceptível, mas que é preciso
explorar. À semelhança das pessoas que se perderam, os ensaístas dão por si num
território desconhecido em que se vêem obrigados a adquirir ou forjar novo
vocabulário ou novas ferramentas para se poderem orientar.
Como
Solnit sugere noutro dos seus livros (Wanderlust:
A History of Walking) quando se refere à sua própria motivação para
escrever, redige-se um ensaio para abrir um caminho novo através da imaginação
ou chamar a atenção para elementos impensados num percurso supostamente familiar.
Num dos passos mais importantes de A Field Guide to Getting Lost, Solnit
descreve a escrita de ensaio ou de não-ficção por oposição à escrita de
ficção: «Nonfiction seems to me
photographic; it poses the same challenge of finding form and pattern in the
stuff already out there and the same ethical obligations to the subject.
Fiction like painting lets you start with a blank canvas […] (In essays, ideas
are the protagonists, and they often develop much like characters down to the
surprise denouement.)» (p.
144). Enquanto o autor de ficção pode começar do nada se assim o desejar,
fabricando personagens, contextos e situações, cabe ao autor de não-ficção ou
ao ensaísta, à semelhança do que se verifica na actividade de um fotógrafo,
encontrar formas e padrões no que existe, desenvolvendo ideias como o autor de
ficção desenvolve personagens. As ideias são as personagens do ensaísta.
A propósito da beleza, Solnit observa o seguinte: «Beauty is often spoken of as though it
only stirs lust or admiration, but the most beautiful people are so in a way
that makes them look like destiny or fate or meaning, the heroes of a
remarkable story. Desire for them is in part a desire for a noble destiny, and
beauty can seem like a door to meaning as well as to pleasure.» (p. 96). Também este passo sobre a beleza se aplica à arte do ensaio. Assim
como a beleza de alguém pode ser associada à sua capacidade de ser protagonista
do próprio destino, escrever um ensaio, uma actividade de captação da beleza
segundo Solnit, corresponde a identificar os protagonistas de determinado
assunto, revelando o destino ou as relações de significado perdidas dos
assuntos estudados. Cabe-nos a nós, enquanto autores ou leitores de ensaios,
decidirmos que assuntos se tornarão os protagonistas da nossa vida.
É uma
questão de movimento e de atenção, dois dos tópicos mais importantes nos livros
da ensaísta e activista Rebecca Solnit. Como se verifica noutros livros desta
autora, por vezes os protagonistas que com mais clareza ajudam a explicar
determinada questão são inesperados e é preciso muita atenção para não os
deixar escapar. Neste e noutros livros, o mais valioso do trabalho de Solnit
reside na atenção ao que outros ignoram ou deixam passar.