O romance
Dept. of Speculation, de Jenny Offill
(n. 1968), foi uma referência constante nas listas dos melhores livros de 2014.
É um romance narrado por uma personagem feminina que tenta conciliar os papéis
de escritora, mulher (esposa) e mãe, no qual se conta o desenvolvimento de uma
relação, desde o início, com passagem pela decisão de casar e ter um filho, até
uma crise do casamento desencadeada por uma infidelidade do marido. Em Portugal
este livro será publicado em 2015 pela Relógio d’Água.
Descrito
desta forma, Dept. of Speculation
parece um romance semelhante a muitos outros. Contudo, apesar de pecar por não
conseguir libertar-se completamente de alguns lugares-comuns mais gastos da
ficção tradicional (além do tópico do adultério, a transição da vida urbana
para a vida suburbana, mas também a preocupação de contar uma história «de
interesse humano» em que é possível identificar princípio, meio e fim), Dept. of Speculation é um romance
corajoso, original e único graças à organização formal e à narração a partir de
parágrafos aforísticos e epigramáticos que surpreendem pela intensidade lírica
e conceptual.
A noção
de «especulação» está presente logo a partir do título: esta especulação é
existencial, literária e filosófica. O romance destaca-se pela capacidade
singular de narrar estes conflitos e as suas pequenas histórias a partir de
parágrafos curtos mas dotados de uma densidade que os aproxima do ensaio breve
e da poesia. Alguns destes parágrafos comentam referências culturais, factos,
episódios ou citações literárias e filosóficas com uma ironia que se reflecte
sobre o enredo principal: «My plan was to never get married. I was
going to be an art monster instead. Women almost never become art monsters
because art monsters only concern themselves with art, never mundane things.
Nabokov didn’t even fold his umbrella. Vera licked his stamps for him.» (p. 8).
Uma
distinção interessante de Dept. of
Speculation em relação a livros que tratam tópicos parecidos é a fase da
vida que a narradora atravessa, entre a juventude e a velhice. À tradição
fascinada pelas ilusões e pelas instabilidades das mulheres jovens, Offill opõe
a rotina e os compromissos da idade adulta, com os ressentimentos e frustrações que lhe estão
associados. Apesar disso, não perde de vista nem a urgência de viver e de escrever
da protagonista, nem o modo como esta urgência se vai tornando cada vez mais
preciosa ao longo da vida.
Talvez a
maior proeza do livro de Jenny Offill seja o modo como a narradora articula as
funções de escritora, mulher (adulta e esposa) e mãe na enunciação: os papéis
de mulher e mãe são desempenhados enquanto escritora; não há uma fronteira
decisiva entre a vida quotidiana e a vida literária. Não se escreve de modo
diferente por se ser mulher e mãe, mas vive-se de modo diferente por se ser
escritora, tal é o esforço constante de fazer sentido da existência quotidiana
que esta condição implica. O impulso de fazer sentido exerce-se tanto sobre os
textos lidos e escritos pela narradora como sobre os episódios e pormenores
mais insignificantes da vida quotidiana. A dificuldade de escrever é descrita
como equivalente da dificuldade de viver e sobreviver. Neste sentido, “Mother
Courage”, o título do texto que James Wood publicou na revista New Yorker sobre este livro de Jenny
Offill, é um pouco redutor. Se Dept. of
Speculation tivesse um narrador e autor do sexo masculino, dificilmente
alguém se lembraria de escolher “Father Courage” como título de uma recensão do
livro. (Não estou a dizer que o trocadilho brechtiano foi escolhido com
intenções discriminatórias, mas sim que, por vários motivos, o problema dos
sacrifícios inerentes à paternidade raramente é sublinhado como tema principal
de um livro com um autor do sexo masculino.)
No seu
próprio site (http://jennyoffilll.com/), Jenny Offill publicou uma lista dos
livros que considera influências próximas e distantes deste romance. Entre
estes inclui autores como o Fernando Pessoa do Livro do Desassossego, Renata Adler, Maggie Nelson, Robert Walser,
John Berryman, Lydia Davis, Kafka, Mary Ruefle e Anne Carson. É fácil perceber
que se trata de uma família de autores que cultivaram ou cultivam formas curtas
e intensas. Jenny Offill aproxima-se destes escritores pela capacidade de
condensar ideias de modo simultaneamente lírico e racional. Distingue-se, no
entanto, pelo imposição de uma corrente narrativa capaz de inspirar o leitor a
relacionar estes parágrafos num enredo
coerente.
Se
quisermos convocar uma família de escritores contemporâneos totalmente
diferentes, podemos pensar em nomes como Elena Ferrante ou Karl Ove Knausgaard,
autores torrenciais que não têm como preocupação principal desenvolver uma
reflexão distanciada sobre os acontecimentos que estão a narrar, procurando
antes expor e explorar pormenores
concretos e emocionais mais imediatos. Pelo contrário, Jenny Offill, à
semelhança de Maggie Nelson e de Sarah Manguso, trabalha descrições depuradas e
intensas de estados de espírito, usando a reflexão quer sobre incidentes
existenciais, quer sobre citações ou anedotas filosóficas ou literárias, como lente
através da qual a narração avança.
As
maiores diferenças de Sarah Manguso e de Maggie Nelson relativamente a Jenny
Offill residem, no caso das duas primeiras, tanto numa secundarização das
preocupações narrativas do registo ficcional como na escolha de temas menos
convencionais: Sarah Manguso publicou livros sobre a sua experiência de uma
doença crónica auto-imune (The Two Kinds
of Decay), sobre a sua reacção ao suicídio de um amigo (The Guardians) e sobre a experiência de
escrever um diário (Ongoingness: The End
of a Diary); entre outros, Maggie Nelson escreveu um livro que se organiza
a partir de parágrafos sobre a cor azul (Bluets).
Manguso e Nelson são, portanto, escritoras mais difíceis de classificar e até
de divulgar.
Aliás,
Sarah Manguso e Maggie Nelson não estão traduzidas em Portugal e não é fácil
nomear escritores portugueses contemporâneos pertencentes à mesma família.
Alguma prosa poética portuguesa actual tende a acentuar vertentes mais líricas,
sem investimento verdadeiramente reflexivo nem grandes preocupações narrativas.
Dir-se-ia que certos textos de Adília Lopes trabalham o mesmo registo dos de
Jenny Offill, mas de modo mais desleixado ou, se quisermos, mais lúdico e
deliberadamente ingénuo. Por este motivo, Adília Lopes é uma escritora
muito diferente de Jenny Offill.